quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Machado de Assis: 100 anos depois, e o Humanitismo

Márcia de Oliveira
No último dia 29 completaram-se 100 anos da morte de Joaquim Maria Machado de Assis. Este famoso carioca, mulato, gago e epilético que, apesar das dificuldades ofertadas pela vida, conseguiu se tornar um dos maiores gênios da literatura nacional, com textos que surpreendem até hoje, principalmente, por sua atualidade.
Esta semana, Machado foi notícia. O centenário de sua morte foi lembrado pelos principais jornais impressos e pelos telejornais de todo o país. Todos deram espaço à importância do texto machadiano para a literatura e para a cultura brasileira. O Jornal da Globo (29/09/08) anunciou: "100 anos após sua morte, Machado ainda é tão atual". O Caderno 3 do Diário do Nordeste (28/09/08) disse: "Machado: clássico, logo atemporal". De fato, a atualidade dos temas e o avanço temporal de Machado são indelevelmente indiscutíveis. Os aspectos políticos, econômicos e a visão progressista tecnológica de seus textos trazem o nosso bruxo do Cosme Velho a uma atualidade já retratada e prevista por ele no passado.
Seus romances, marcados por acentuada crítica social, irreverência e ironia, transformaram o autor de Dom Casmurro num dos maiores ecritores brasileiros, mas o que pouca gente sabe é que Machado cultivou com excelência vários outros gêneros literários. Contos, novelas, poesia, teatro e, principalmente, crônicas. Foi como cronista que Machado iniciou sua carreira literária, dedicando aproximadamente 40 anos de sua vida (apenas!) à produção de crônicas em folhetins. Para quem não sabe, os folhetins eram partes dos jornais dedicadas exclusivamente ao entretenimento dos leitores, onde eram publicadas não só crônicas, mas também novelas, contos, etc.
O carioca Machado foi um dos maiores cronistas que o Brasil já teve. Porém, como suas crônicas eram extremamente voltadas à crítica política e davam violentas alfinetadas na sociedade brasileira da época, e por ser a crônica historicamente considerada pela crítica literária um gênero menor, várias séries de crônicas como A Semana e Balas de Estalo foram esquecidas pela historiografia literária. Assim, o nosso envolvente Dr. Semana (um de seus pseudônimos nas crônicas) não se tornou tão conhecido pelos leitores da atualidade quanto Bentinho (Dom Casmurro), Brás Cubas, Capitu e Conselheiro Ayres, todas personagens inesquecíveis de seus romances.
Como leitora, não preciso dizer que sinto verdadeiro fascínio pelas personagens do realismo machadiano. No entanto, há uma, em especial, que me causa profundo deleite e curiosidade. Talvez até mesmo pelo seu ligeiro esquecimento por parte dos leitores em relação a outras personagens mais vistas. Seu nome é Quincas Borba.
O filósofo Quincas Borba, cuja trajetória começa no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas e termina em um romance intitulado por seu próprio nome, é conhecido por ser o inventor da filosofia denominada Humanitismo. Quincas era um homem esquisito, solitário, tido como maluco e que herdou a herança de um tio. Seu único companheiro era um cão de estimação a quem deu-lhe o próprio nome, tamanho era o apreço que lhe tinha.
E como toda filosofia, o Humanitismo possuía um princípio: o Humanitas. Era este princípio que Quincas Borba utilizava para explicar o seu próprio nome posto em um cão:
-Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o princípio da vida e reside em toda a parte, existe também no cão, e este pode assim receber um nome de gente, seja cristão ou muçulmano...
-E se eu morrer antes, como presumo, sobreviverei no nome do meu bom cachorro.
O Humanitismo é o remate das coisas, afirma Quincas Borba. E o Humanitas é o princípio.
-Há nas coisas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível - ou, para usar a linguagem do grande Camões:
Uma verdade que nas coisas anda,
Que mora no visíbil e no invisíbil.
-Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo porque resumo o universo, e o universo é o homem. (Quincas Borba, p.19).
Através deste princípio, Quincas Borba explica a inexistência da morte. Para ele, o encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas pode determinar a supressão de uma delas. Portanto, não há morte; há apenas vida, pois a supressão de uma é a condição de sobrevivência da outra. E, seguindo a mesma linha de raciocínio, o filósofo destaca ainda o caráter benéfico e conservador da guerra. Segundo ele, a guerra é a conservação das substâncias. Não há exterminado. Desaparece um fenômeno, uma expansão, mas a substância é a mesma. E o lema da guerra é: "ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas". Numa analogia mais atual: ao 3º mundo, ódio ou compaixão; aos EUA, as batatas!
Pois é, meus amigos do Letras & Arte, mas com Humanitismo ou sem Humanitismo, um fato intrigante é que Quincas Borba, apesar de título, não é o protagonista da obra. Peripécias do nosso querido bruxo! O romance conta a história de Rubião, um professor humilde, porém interesseiro, que vê em sua amizade com o filósofo Quincas a possibilidade de ascender socialmente. Quincas Borba adoece e não tem parentes vivos; somente o cachorro. Ao morrer, deixa seus bens para o amigo Rubião como recompensa por seus cuidados. Em contrapartida, exige que Rubião cuide do cachorro (Quincas Borba), pois caso se desfaça do animal, perde todo o direito de receptor da herança. E Rubião, obviamente, faz a vontade do amigo. Fica com o cachorro e muda-se de Barbacena (cidade onde morava Quincas Borba) para o Rio de janeiro, capital imperial, onde passa a levar uma vida abastada (como sempre sonhou), respirando os sofisticados ares da corte. Lá, conhece pessoas influentes, esbanja, oferece jantares aos amigos, se apaixona por Sofia (mulher de seu amigo Palha, não sendo porém correspondido), faz negócios mirabolantes e acaba perdendo tudo o que tem. Na mais completa miséria, enlouquece. Passado algum tempo, volta com o cachorro para Barbacena. Desprovido de posses, perambula pela cidade, passa fome e sede, toma chuva, adoece e morre. Ironicamente, antes de morrer, grita o lema da guerra: ao vencedor, as batatas!
O Humanitismo trata-se de uma filosofia materialista, em muitos momentos contraditória, e pouco existencial. De forma irônica e irreverente, Machado acentua forte crítica social e provoca uma reflexão no leitor. Segundo o escritor José Castello, Machado de Assis, assim como todo grande escritor, é um pensador do mundo. Não é filósofo, não é teólogo, não é cientista. Mas existe um caminho de pensar o mundo, que é a Literatura, que não tem nada a ver com esses campos, mas produz pensamento.
Na Literatura não existem verdades universais; existem interpretações, reflexões que devem ser formuladas pelo próprio leitor, a partir do que encontra de mais significativo no texto. Machado não é o tipo do escritor que deixa lições; apenas provoca reflexões.
A filosofia humanitista de Quincas Borba é apenas o retrato da real filosofia humana, cuja ganância e o desejo de ascenção social, supervalorizam as pessoas pelo que possuem e não pelo que realmente são. A maior riqueza da escritura de Machado é justamente extrair grandeza das pequenas coisas. O seu apego às coisas menores da vida cotidiana, aparentemente mais desprezíveis, sem significado, das quais ele sabia extrair um imenso valor, com sua sensibilidade e inteligência.
Machado de Assis é mais que um escritor; é um pensador da existência. E existir é existir no mundo, no erro, na miséria, na ignorância. Os temas escolhidos por Machado, segundo José Castello, não são os grandes temas, os mais elevados, os mais sublimes; mas os pequenos temas, aqueles que nos infernizam e nos fazem tomar decisões na vida.
Ser humano é ser imperfeito. E Machado sabia disso quando compôs um dos seus mais intrigantes personagens: o filósofo Quincas Borba. Ao afirmar que Humanitas é o homem porque este é a representação do universo, o filósofo põe em choque o homem e o seu verdadeiro ser.É exatamente essa visão tão real do mundo que faz da obra de Machado uma obra viva até hoje, tão viva quanto nos séculos XVIII ou XIX. Essa reflexão sobre valores humanos que nos cercam e que parecem tão simples, que nem mesmo prestamos muita atenção neles, faz do autor de Quincas Borba um pensador inigualável. Tanto Rubião quanto Quincas Borba foram vencedores. E o Humanitismo só veio provar que, segundo o princípio humano da guerra, ao final de tudo, ao vencedor, só restam mesmo as batatas.
Esse texto foi uma promessa que fiz aos leitores do Letras & Arte logo nas primeiras semanas de sua existência. Como promessa é dívida, ei-lo aqui! Espero que tenham gostado.
Gostaria então de terminar dizendo que aqui na minha cidade, no bairro Damas, existe uma rua chamada Machado de Assis. E lá, todos os moradores, assim como o escritor, têm muita história para contar...Porém, seriam necessários, pelo menos, mais uns cem anos para relatá-las! Vocês podem ficar sabendo de muitas delas em:
Grande abraço.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Psicanalisando-me

*Paulino Vergetti
Disse-me, de mim para mim,
o tanto que não me existiam
essas minhas palavras.
Algum silêncio perturbador
foge dos meus lábios
e meu olhar nem sabe decerto
quem eu sou.
Se não me disfarço, viro eu máscara
e tudo o que eu for, saberão
e até o que nem sei de mim se fui um dia.
Falam-me por mim as outras palavras
que me saem de graça
até quando me calo e nada eu digo.
Disse-me eu de mim para mim um dia
que, para eu sorrir,
antes, deverei chorar calado.
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*Paulino Vergetti é um grande amigo e maravilhoso poeta alagoano. É o Letras & Arte divulgando as maravilhas do nosso Brasil!

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Caetaneando um pouco...


Márcia de Oliveira
Tropeçavas nos astros desastrada Quase não tínhamos livros em casa E a cidade não tinha livraria Mas os livros que em nossa vida entraram São como a radiação de um corpo negro Apontando para a expansão do universo Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (E, sem dúvida, sobretudo o verso) É o que pode lançar mundos no mundo. Tropeçavas nos astros desastrada Sem saber que a ventura e a desventura Dessa estrada que vai do nada ao nada São livros e o luar contra a cultura. Os livros são objetos transcendentes Mas podemos amá-los do amor táctil Que votamos aos massos de cigarro Domá-los cultivá-los em aquários Em estantes, gaiolas, em fogueiras Ou lançá-los pra fora das janelas (Talvez isso nos livre de lançarmo-nos) Ou - o que é muito pior - por odiarmo-los Podemos simplesmente escrever um: Encher de vãs palavras muitas páginas E de mais confusão as prateleiras. Tropeçavas nos astros desastrada Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas...
(Livros, Livro, faixa 02)
...E como o Letras & Arte também é música, e música de qualidade, achei que não deveria deixar passar em branco o apreço que tenho por um dos CD’s de Caetano Veloso mais especiais dos últimos tempos e que tem tudo a ver com o Letras & Arte. Seu título é “Livro” e foi lançado pela Polygram em 1997. O baiano Caê, como é chamado pelos íntimos, apesar de cultivar hoje um estilo meio antagônico ao que mantinha nos tempos da Tropicália, de vez em quando, ainda volta à sua normalidade musical e nos presenteia com maravilhas da música popular brasileira. Gosto de sua musicalidade , de sua diversidade rítmica, de suas letras poéticas e sua linguagem rebuscada. Cada música de Caetano poderia ser considerada uma aula de Português. Figuras de linguagem, diversos elementos estilísticos e tempos verbais ligeiramente inusitados, unidos à presença de elementos da cultura popular brasileira, fazem do “Livro” um verdadeiro almanaque cultural do Brasil. Este é fatalmente um de seus melhores trabalhos musicais e acabou lhe rendendo um grammy de melhor álbum de world music em 1999.
Vem, eu vou pousar a mão no teu quadril Multiplicar-te os pés por muitos mil Fita o céu, Roda: A dor Define nossa vida toda Mas estes passos lançam moda E dirão ao mundo por onde ir. às vezes, tu te voltas para mim Na dança, sem te dares conta enfim Que também Amas Mas, ah! Somos apenas dois mulatos Fazendo poses nos retratos Que a luz da vida imprimiu de nós. Se desbotássemos, outros revelar-nos-íamos no carnaval. Roubemo-nos ao deus Tempo e nos demos de graça à beleza total, vem. Nós, Cartão-postal com touros em Madri, O corcovado e o redentor daqui, Salvador, Roma, Amor, Onde quer que estejamos juntos Multiplicar-se-ão assuntos de mãos e pés E desvãos do ser.
(Os Passistas, Livro, faixa 01)
Elementos culturais como o carnaval carioca e o carnaval baiano, traduzem-se através do cotidiano mais íntimo de personagens comuns, como um casal de passistas mulatos, por exemplo. O uso de verbos no futuro do pretérito faz da mistura do popular com o erudito uma verdadeira explosão auxiliada pelo ritmo de samba enredo. A presença de aliterações (marca característica de Caetano) produz rimas de efeitos estilisticamente originais.
Dividido em 14 faixas ecléticas, "Livro" traz a sonoridade ardente do samba de raiz, a calmaria da Bossa Nova e a rebeldia do rap. Traz ainda figuras de destaque na história mundial, como uma canção para Alexandre, o grande e um excerto do poema "Navio Negreiro", de Castro Alves, recitado belamente por Maria Betânia.
Outros artistas brasileiros também são lembrados nas páginas, ou melhor, nas faixas do Livro, como Tom Zé, Arrigo Barnabé, Tom Jobim, Arnaldo Antunes, Chico Science, todos misturados a uma letra doidevanas, que relata a mistura da cultura musical de diferentes décadas e regiões brasileiras, numa brincadeira pra lá de criativa e interessante. A música chama-se Doideca e é particularmente uma de minhas preferidas.
E para não esquecer, este álbum, que traz na bagagem a paixão deste ex-Tropicália por livros, é uma verdadeira preciosidade de sua discografia e um elemento sonoro indispensável aos ouvidos de todos os brasileiros. Como se trata de um álbum antigo, o preço está bem acessível e, por incrível que pareça, fácil de encontrar.
Aproveitem essa dica!
Abraço forte.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Visão de Clarice Lispector

Carlos Drummond de Andrade
Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial, era Clarice viajando nele.
Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar sua razão de ser e retratar o homem.
O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata ou um anjo?)
Não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.
Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.
O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.
De Clarice guardamos gestos.
Gestos, tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.
Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam
em agora, edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo, Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.
Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.

domingo, 14 de setembro de 2008

Ecos: abrindo gavetas...

Márcia de Oliveira
Como já mencionado no texto anterior, orgulha-me muito o fato de ser amiga de alguém tão especial como Luiz de Almeida. Um ilustre habitante da bonita Piraju, no interior paulista, artista plástico, poeta, ensaísta, autor do blog Retalhos do Modernismo e de Ecos, uma coletânea de poemas que caiu em minhas mãos, purificando o meu espírito, e que vem gerando grandes transformações no meu modo de ver e pensar o mundo.
De antemão, peço desculpas a todos os meus outros amigos também poetas, escritores, jornalistas, pessoas que fazem deste blog um verdadeiro paraíso literário, que mais nos lembra um agradável banco de praça, onde podemos nos encontrar para sentar e conversar sobre aquilo de que mais gostamos: literatura. Não quero que pensem que, pelo fato de ainda não estarem aqui, são menos dignos de minha admiração, muito pelo contrário: nossas vozes sempre ecoarão juntas aqui neste grande sarau do Letras & Arte.
Peço permissão então para iniciar, junto com vocês, a abertura das surpreendentes gavetas de Luiz de Almeida, gavetas de onde ecoam gritos, desejos, histórias e longas noites insones de intensa produção literária.
Ecos traz seu primeiro capítulo, ou melhor, sua primeira gaveta intitulada Frutos I, que se inicia com uma máxima reflexão sobre a insônia: “Para o ignorante e/ou preguiçoso, a insônia é uma doença. Para o poeta e para o sábio, uma virtude”. Sem dúvida alguma, a noite, calada e obscura, sempre nos rendeu grandes poetas. Desculpem a minha insensibilidade, mas é muito bom saber que enquanto dormimos existe alguém pensando e transcrevendo esses pensamentos para o mundo real. Pensamentos, sentimentos que, ao serem transcritos, transformam profundamente o humano no sentido intrínseco do ser. Sublimação.
O primeiro eco retirado da gaveta apresenta e justifica todos os outros. Ecos, meus ecos são gritos que despertam, sacodem, repelem, acolhem; mas, acima de tudo, nos carregam para um infinito interior e nos fazem refletir sobre nós mesmos. Quantos de nós já não calamos algum grito? Quantos de nós já não engavetamos um sonho ou uma indignação?
Os gritos ecoados das gavetas de Luiz de Almeida são gritos que denunciam o peso do silêncio dos inocentes mortos, das crianças famintas, dos doentes, das mães desamparadas, das prostitutas, dos negros, dos órfãos...
Sua temática é a temática da realidade, das ruas das grandes cidades, dos bares, das fábricas, das favelas, das praças; do operário, da dona-de-casa, do analfabeto, do pobre, de toda a gente brasileira:
“(...) Ecos, meus ecos... Ecos da fome E da indiferença, Ecos da perambulação E da prostituição, Ecos da pobreza E da ignorância”.
Mas como sua poeticidade é infinitamente diversificada, outros elementos também se destacam, além dos temas sociais. O lirismo marcado pela presença da infinitude da noite, da solidão, com pequenas doses de naturalismo e uma linguagem às vezes metaforizada, às vezes limpa e clara.
“(...) Desacato e atrevimento é dizer que a noite é uma calada. Talvez e somente em alto mar, numa jangada”...(p.29)
“Um vazio melancólico, que entra e que sai. Uma tristemania, Que fica e que vai. Um grande silêncio É provado por alguém, Que deixa um alguém Sem ninguém, Só”. (p.33)
“(...) Uma pestana e uma acordada e, de repente, em sua frente, ela pelada e cheirando a suor e também muito aguardente”...(p.23)
“(...) E o enterro subiu a rua nua E desceu na sepultura escura”... (p.31)
E o fazer pensar, acompanhado do mais singelo lirismo, continua em todos os Frutos, em todas as gavetas do Ecos. Preciso confessar que ele já se tornou meu livro de poemas de cabeceira. É tão eloqüente, tão verdadeiro, tão puro, mesmo quando fala de coisas impuras, como a política no poema Politicagem (p.51):
"Um jogo que não tem regras E muito, muito menos verdades. São promessas infundadas, Nunca cumpridas. Falsidades e risos adulterados E sem vontade Crenças, muitas crenças... Inócuas. Palavras e idéias quase sempre falidas Injúrias e calúnias sempre formuladas. Esquece-se da vida do homem Que acaba sempre desmoronada, perdida... (...)o povo, sempre marginalizado, só lembrado por ser o eleitorado.
Depois, bem logo depois O esquecimento que foi por ele votado. (...)Passa-se um tempo e vêm novos eleitorados que serão novamente enganados. Os politiqueiros famintos, Famintos pelo voto e também A cada vez, mais e mais, Por tudo aquilo que os deixam Abonados".
Abro um parêntese para dizer que, numa época em que vivemos um período de eleições municipais, achei muito pertinente transcrever estes fragmentos do poema. Assim, podemos pensar juntos sobre tudo aquilo que estamos fazendo nas urnas eletrônicas e, sobretudo, naquilo que os políticos não fazem fora delas.
Mas, voltando às coisas boas da obra, é imprescindível dizer o quão notável é a vida do autor em cada poema, em cada palavra, em cada verso. Acho que ainda não mencionei a vocês que não tive o privilégio de conhecer Luiz de Almeida pessoalmente. Somos amigos sim, grandes amigos; só que virtuais. A distância física e geográfica não foi capaz de impedir uma relação fraterna e dileta como a nossa. Venho lendo os trabalhos de Luiz e me comunicando com ele através de missivas virtuais há mais ou menos uns dois anos. E confesso que tenho poucas amizades presenciais tão verdadeiras e agradáveis quanto esta.
Apesar de conhecê-lo pouco e há pouco, percebo nas entrelinhas do Ecos o quanto sua vida simples, interiorana, na pequena Piraju influencia sua literariedade. Seu amor pelas letras, pelas pesquisas literárias; seus momentos, sua vida familiar, cercada de amigos, de pessoas que o amam e, sobretudo de livros, dos livros que tão bem conserva em sua biblioteca são a fonte inspiradora da maior parte de seus frutos. Seus ecos, seus gritos pela justiça e o bem comum, provavelmente são oriundos de sua aproximação com a grande São Paulo, cidade que, apesar do caos social, também apaixona pela grandiosidade e por ser o berço da arte moderna brasileira, da Semana de Arte Moderna, realizada em 1922, uma das maiores paixões de Luiz de Almeida.
“Quando se ama alguém Nunca deve-se dizer: Te amo muito...de coração Se realmente ama, Deve-se dizer: Te amo muitíssimo... Com toda minh’alma. Não se pode esquecer que O coração pára e morre E a terra o consome. A alma...é imortal”. (p.117)
Só me resta dizer o quanto me sinto honrada de ser amiga deste grande escritor e de poder ter aberto para vocês uma parte de suas gavetas. Fico feliz de ter ajudado a apresentá-las ao mundo, pois gavetas como estas não devem permanecer fechadas e tão pouco seus ecos permanecerem calados. Gavetas abertas, gritos ecoados, almas libertas!
Parabéns, Luiz!
Um grande abraço a todos.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Apenas um grito


(Márcia de Oliveira)
Outro dia, fui a uma escola da rede particular de ensino aqui de minha cidade tentar uma vaga de professora de Literatura (coisa que adoro!), mas acabei não ficando. Ainda bem!
O motivo é que a escola me pareceu um tanto quanto retrógrada, exploradora e coordenada por pessoas que não sabiam a diferença entre um camelo e um cachorro (rsrs). Aliás, esta escola era exatamente igual a muitas outras também particulares, também empresas, e não escolas.
Durante as muitas horas que o coordenador me fez esperar (só para me dizer um não), tive o prazer (ou não!) de conversar com outros professores que lá já trabalhavam e, alguns deles, apesar de já possuirem certa experiência, me pareceram tão ou mais iniciantes do que eu. Tenho pouca experiência em sala de aula, que se resume facilmente a dois estágios em escolas públicas e algumas aulas particulares que, de vez em quando, me arrisco a dar, e algumas vezes nem foram particulares, foram gratuitas mesmo, para quem não podia pagar.
Para a maioria das escolas isso é quase nada. E de fato o é. Frente a profissionais com 10, 15, 20 anos de experiência, realmente sou menos do que uma iniciante, uma reles aprendiz. Porém, cabotinismos à parte, sinto que tenho algo que muitos experts no assunto não têm: sensibilidade (ao lidar com pessoas) e vontade de aprender. Tudo isso unido a um forte desejo de mudar. Mudar a realidade na educação, tal qual ela anda.
Não gosto, por exemplo, do ensino de Literatura nas escolas, e me refiro à maneira como ela é repassada aos alunos, principalmente, aos alunos do ensino médio. Uma coisa mecânica, decoreba pura, totalmente ligada ao vestibular. A principal universidade do Ceará lança todos os anos uma lista com 10 títulos de obras literárias e sempre uma ou duas delas poderão ser aplicadas na prova de Língua Portuguesa. No entanto, o que eles acreditam estimular nestes alunos a leitura e o prazer de conhecer um pouco mais de nossa Literatura, produz neles um efeito completamente oposto. Primeiro, porque estes alunos (ou pelo menos a maioria deles) só têm em mente um único propósito: a aprovação, o ingresso na universidade pública que, apesar dos pesares, ainda é a melhor. Segundo, porque as obras indicadas pouco estão relacionadas à realidade de leitura deles. Acredito que menos da metade dos candidatos ao vestibular leiam 10 livros por ano. E se alguém me provasse que eles lêem pelo menos um, já me deixaria contente. Não critico exatamente as obras escolhidas, mas o contexto em que elas são inseridas na vida destes jovens, que não passam de leitores em formação, leitores em potencial, que ali naquele momento de suas vidas, não terão o tempo necessário e o prazer de degustar o apetitoso prato que é a leitura.
As aulas nos cursinhos e escolas de ensino médio contribuem para que os alunos saibam de tudo o que está nos livros e de toda a vida dos autores sem que precisem fazer algo que, para eles, não tem a menor importância: ler as obras. Resumos, TD's, aulões específicos e várias outras ferramentas de improviso da leitura, que é deixada de lado por estes profissionais que também têm em suas mentes um forte objetivo: levantar seu nome e o nome da instituição de ensino de onde sairá aquele aluno aprovado nos vestibulares mais concorridos do país.
Esta é a nossa política educacional de incentivo à Literatura: alunos que memorizam informações que lhes são dadas de mão beijada e não formuladas em suas cabeçinhas através de processos cognitivos; obras que são lidas sem o menor prazer literário, sem nem mesmo um objetivo da leitura propriamente dita que não seja a aprovação. "Não tiraremos nada daqueles livros que contribua para o crescimento humano, apenas conseguiremos passar no vestibular". Esta é a mentalidade.
A leitura de nossas obras literárias não deveria ser foco principal apenas na época do vestibular, deveria ser um hábito desde a decodificação das primeiras letras. Ler deveria ser como tomar água e escovar os dentes, coisas que precisamos fazer todos os dias, não necessariamente pela obrigação, mas por sabermos que aquilo só nos fará bem. Se acordo e não tomo água, passo o dia todo com sede, com desejo de água; se não escovo os dentes, sinto que algo está faltando, que algo não vai bem comigo. O mesmo deveria acontecer quando não lemos pelo menos uma página de um livro por dia. Deveríamos sentir sede, fome, mal-estar, a sensação de que algo não vai bem.
Bem, mas voltando à escola, onde eu estava há alguns dias tentando ocupar uma vaga de professora. Durante quase uma manhã inteira que fiquei lá, conversei com alguns professores. Um deles, me agradou bastante. Era jovem, simpático, agradável, estava ministrando aulas lá há pouco tempo, havia algumas semanas. Era professor de Química e iniciamos uma conversa, por incrível que pareça, acreditem, sobre Literatura! Eu estava acompanhada por um amigo que, assim como eu, se formou em Letras e, quando o professor de Química chegou, estávamos falando sobre Literatura. Comentávamos minha decepção com a Literatura focada no vestibular, a falta de hábito de leitura nos brasileiros, etc, etc. O químico se apresentou e começou a participar da conversa. Inicialmente, foi bastante agradável, concordava conosco em tudo. Na metade da conversa, meu amigo se esquivou e deixou a prosa rolar solta só comigo e o meu mais novo amigo químico. Estava tudo muito bem, concordávamos um com o outro, descobrimos que havíamos lido muitas obras em comum, que gostávamos de autores em comum, ele me deu muita força dizendo que com certeza a escola iria me contratar e meu amigo fazia sinal com os olhos como que insinuando o início de uma paquera. Apesar das brincadeirinhas, não me constrangi, estava levando a discussão a sério. Então, para a mudança de rumo da prosa, o professor de Química falou algo que me entristeceu bastante. Disse que não gostava de Literatura brasileira regional, que leu João cabral de Melo Neto e não gostou, que não gostava do Patativa do Assaré, que não entendia porque tínhamos de nos orgulhar de um cara que só escrevia besteiras e falava errado. Houveram alguns instantes de silêncio após estas afirmações. Fiquei perplexa. Havia escrito há poucos dias um texto sobre o Patativa e a cultura nordestina aqui no Letras & Arte. Como um cara que era nordestino e, inicialmente, me pareceu gostar tanto de Literatura, não apreciava a própria cultura? O meu silêncio me desesperava, porque fazia-o acreditar que eu concordava com tudo aquilo, mas eu estava decepcionada. Fiquei pensando se deveria ou não iniciar mais uma discussão, agora com pontos de vista tão divergentes. Será que valeria a pena? Será que eu, em poucos minutos, conseguiria mudar uma opinião que possuía certamente anos, décadas de formação? Antes que eu me decidisse, o coordenador finalmente me chamou e eu fui até à sala dele. Ele me disse objetivamente que precisava de uma professora mais experiente, que apenas os estágios não me valiam muito. E, ao sair de lá, após duas decepções consecutivas, fiquei pensando em tudo aquilo. O coordenador queria uma professora de Literatura experiente. Eu não tinha experiência com o magistério, mas tinha experiência com a leitura. Um bom professor não precisa necessariamente de experiência, mas de conhecimento e amor pelo que faz. Meus pais nunca foram professores e me ensinaram as melhores coisas da vida: o amor, a educação, o respeito ao próximo, lições que nunca esquecerei. De fato, fiquei aliviada, e dei graças a Deus por não ter ficado lá. Não me sentiria bem em trabalhar em uma escola em que o coordenador não sabe o que é ser professor, não sabe o que é Literatura e contrata professores apenas pelo que está escrito em seu currículo, e não pelo que vê em seus olhos durante as entrevistas.
Estou lendo um livro maravilhoso chamado Ecos, obra-prima de um escritor que vive em Piraju, interior de São Paulo e de quem eu tenho um imenso orgulho de ser amiga. Seu nome é Luiz de Almeida, e o Ecos é, na verdade, "um grito em prol da justiça e do bem comum", como ele mesmo o definiu na dedicatória que me fez. Este texto que vocês lêem agora também é um grito, é um grito meu, que retorna através de um sonoro eco incontido nestas palavras, clamando por mudanças. Mudanças no sistema educacional brasileiro, em nossa política, em nossa maneira de ver o mundo e as pessoas, mudanças em nossa mente, em nosso coração...
Precisamos compreender e aceitar o fato de que uma nação sem cultura, sem sabedoria é uma praia sem mar, um beco sem saída. João cabral de Melo Neto não é uma leitura chata para quem sabe ler; Patativa não falava besteiras e nem escrevia errado, apenas escrevia do jeito que falava, do jeito que sabia. E sabia muito! Bem mais do que muitos intelectuais que vivem nas cidades, vão à universidade de carro, se trancam em salas com ar condicionado e ainda reclamam da vida. Patativa não cantava suas poesias, gritava-as! Seus gritos também têm ecos, como os de Luiz de Almeida. Denunciam o sofrimento do povo nordestino, a miséria, a falta de trabalho, de educação e o esquecimento por falta dos governantes. Este meu grito, este meu eco que agora vocês ouvem, denuncia a nossa falta de sabedoria, a nossa falta de amor à cultura genuína de nossa terra que, antes mesmo de ser nordestina é, sobretudo, brasileira.
Esta semana, vi um programa de TV sobre Literatura numa emissora local. O tema abordado no programa era a Padaria Espiritual no Ceará, um movimento cultural do século XIX que deixou nosso estado conhecido nacionalmente e que muita gente hoje em dia sequer ouviu falar. Sua importância para a nossa literatura (pois foi um movimento que, apesar de polivalente nas modalidades artísticas que dele participaram, contribuiu de forma mais densa para a Literatura, pois a maioria de seus padeiros era composta de escritores) foi grandiosa e já foi tema de outro texto do Letras & Arte que vocês podem conferir mais abaixo. Os participantes debatedores do programa eram a diretora da Academia Cearense de Letras, Regina Pamplona Fiúza e meu ex-professor de Literatura Cearense da Universidade Federal do Ceará, Sânzio de Azevedo. Tudo corria bem, até que o apresentador do programa anunciou uma matéria feita nas ruas com o povo cearense em que perguntavam se essas pessoas conheciam a Padaria espiritual. As respostas foram mirabolantes, uma mais absurda que a outra. Fiquei chocada! Mas claro que sei que a culpa de tudo isso não é somente nossa. Tudo bem, acho que o interesse em conhecer é muito importante e deve partir sim de cada um, mas é claro que o nosso sistema de ensino tem a obrigação de nos colocar diante de nossa literatura, de nossa história. As escolas focalizam muito pouco a história do Ceará e a literatura produzida aqui. Na verdade, não era para ser nenhum espanto ouvir da boca de um cidadão cearense que a padaria espiritual é uma avenida de Fortaleza, visto que nossas escolas não contribuem muito para o nosso próprio conhecimento. Tirando a pequena parcela da população que habita os corredores dos cursos universitários, sobretudo os de Letras e de História, pouquíssimo sabemos sobre nós mesmos.
E é por isso que estou aqui, trazendo meu grito, meu eco para estremecer junto com vocês, a uma só voz:
Mudanças, pelo amor de Deus!

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Patativa do Assaré...

(Márcia de Oliveira)
O nome desta ave característica das caatingas nordestinas tornou conhecido em todo o Brasil (e até fora dele também) o poeta cearense Antonio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, nascido a 05 de março de 1909 na serra de Santana, pequena propriedade rural do município de Assaré, ao Sul do Ceará. É o segundo dos cinco filhos de Pedro Gonçalves da Silva e Maria Pereira da Silva, progenitores de uma família simples e batalhadora, que sempre lutou para sobreviver em meio às dificuldades climáticas e políticas do sertão nordestino.
Analfabeto de pai e mãe, "sem saber as letra onde mora", como diz em um de seus poemas, Patativa abandonou os estudos na 4ª série, alegando ser a escola totalmente sem importância; pois, segundo ele, "a professora falava muita besteira". Menino pobre, perdeu o pai aos oito anos de idade e desde então teve que ganhar a vida e garantir o sustento de sua família trabalhando com a enxada, na roça, de sol a sol.
Conhecido como o poeta da oralidade, do canto nordestino, Patativa prova que sua pouca instrução não lhe desproviu de expressar sua verdade interiror através da poesia. Seus versos, marcados pela oralidade, cantam a existência e denunciam injustiças sociais, propagando a consciência e perseverança do povo nordestino, que enfrenta a miséria e as mazelas da seca:
"Eu sou de uma terra que o povo padece
Mas não esmorece e procura vencer.
Da terra querida, que a linda cabocla
De riso na boca zomba no sofrê
Não nego meu sangue, não nego meu nome.
Olho para a fome , pergunto: que há?
Eu sou brasileiro, filho do Nordeste,Sou cabra da Peste, sou do Ceará."
Mesmo com sua facilidade em compor versos rimados desde menino, o velho Patativa nunca quis ganhar dinheiro em cima de seu dom. Compunha e apresentava seus versos aos amigos ou aos vizinhos em praças ou teatros, sem cobrar nada por isso. Para ele, a música e a poesia eram diversão, "apenas para passar o tempo". E por falar em tempo, passou toda a sua vida morando na mesma casinha simples de Santana, município de Assaré. Mesmo quando foi apresentado ao Brasil inteiro pelo cantor e compositor também cearense Raimundo Fagner, Patativa continuou mantendo a sua origem simples de homem do sertão.
Gravou discos, fez shows, participou de recitais e teve até um documentário em película produzido pelo cineasta Rosemberg Cariri, que falava sobre Patativa e a cultura nordestina. Seus poemas em cordéis foram publicados ocasionalmente por pesquisadores, músicos e amigos, em parcerias com pequenos selos tipográficos e hoje são considerados verdadeiras relíquias para colecionadores e amantes da Literatura.
"Sinhô Dotô não se enfade
Vá guardando essa verdade
E pode crê, sou aquele operário
Que ganha um pobre salário
Que não dá para comer."
A toada-aboio "Vaca Estrela e Boi Fubá", que narra a saudade da terra natal e do gado foi sucesso do 1º disco, A Terra é Naturá, em versão gravada por Luiz Gonzaga e logo depois por Fagner no LP "Raimundo Fagner", de 1980:
"Eu sou filho do Nordeste, não nego o meu naturá
Mas uma seca medonha me tangeu de lá pra cá
Lá eu tinha o meu gadinnho, num é bom nem imaginar
Minha linda Vaca Estrela e o meu belo Boi Fubá.
Quando era de tardezinha eu começava a aboiar".
Outro ponto marcante do mesmo disco é o poema Antonio Conselheiro, que narra a saga do messiânico desde os dias iniciais em Quixeramobim até a batalha final no Arraial de Belo Monte em Canudos. Patativa, com sua verve poética, reproduz fielmente a tradição das histórias orais contadas em rodas e mantidas pelos violeiros e repentistas do nordeste brasileiro.
Sempre perguntavam a Patativa o que ele achava do progresso, dos novos meios de comunicação. Em resposta a uma destas perguntas, ele canta suas autênticas convicções sobre o aparelho de tv:
"Toda vez que eu ligo ele
No chafurdo das novela
Vejo logo os papo é feio
Vejo o maior tumaré
Com a briga das mulhé
Querendo os marido alheio
Do que adianta ter fama?
Ter curso de Faculdade?
Mode apresentar programa
Com tanta imoralidade?!"
É ou não é para a gente se orgulhar? :)
Com sua saúde abalada desde os 91 anos de idade em virtude de uma queda e a memória já ficando comprometida, Patativa parou de compor versos. E como ele próprio explicou: "já disse tudo que tinha de dizer". No dia 08 de julho de 2002, Patativa morre, aos 93 anos, na sua terra natal, deixando um importante legado poético-literário para a cultura brasileira e uma imensa saudade no coração do povo cearense.
Salve Patativa!

domingo, 17 de agosto de 2008

“Gosto dos venenos mais lentos! Das bebidas mais fortes!
Dos cafés mais amargos! Tenho um apetite voraz.
E os delírios mais loucos.
Você pode até me empurrar de um penhasco que eu vou dizer: E daí? Eu adoro voar!"
Descoberta do Mundo - Clarice Lispector

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Syntagma

(Márcia Oliveira)
Sim, ainda há vida inteligente no atual cenário da música brasileira!...
No Ceará, um grupo de músicos se reuniu em 1986 com a proposta de resgatar a sonoridade da música antiga ( medieval, renascentista e barroca) e uní-la à música nordestina contemporânea. O resultado dessa mistura foi o Grupo Syntagma, hoje formado por nove músicos instrumentistas, liderados pelo cearense Heriberto Porto.
Com uma proposta musical essencialmente instrumental, o Grupo Syntagma vem conquistando, a cada dia, seu espaço no mercado sonoro e na cena cultural cearense. Os músicos possuem uma vasta agenda e se apresentam em ambientes que valorizam a democracia da arte, como o Centro Cultural do BNB, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e outras localidades do estado que também promovem festivais culturais.
Embalados pela belíssima sonoridade das flautas, pelo acompanhamento de instrumentos antigos clássicos, como o cravo, a viola-da-gamba e o contrabaixo acústico, e pelo ritmo de Luiz Gonzaga e outros compositores nordestinos, o Syntagma faz jus ao nome que tem, pois busca unir elementos da cultura popular e da cultura erudita que se harmonizam como complementos de uma unidade maior: a música!
É interessante observar a preocupação dos músicos em demonstrar a gênese de cada uma das peças tocadas. No espetáculo, entre um movimento e outro, há sempre uma sintética explanação sobre a autoria e a história da composição, sem esquecer a literariedade de cada peça, pois elas sempre expressam um sentimento, uma subjetividade do autor, que é facilmente sentida pelo público, o que torna o grupo ainda mais brilhante e original.
Tive o privilégio de ver, pela primeira vez, este grupo excepcional se apresentar na última quinta-feira (17/07) no Centro Cultural do BNB de Fortaleza. A apresentação foi gratuita e faz parte de um festival de música instrumental que teve início no último dia 16 e irá até o dia 02 de agosto. Outros músicos tão bons quanto os do Syntagma deverão se apresentar por lá nos próximos dias. A iniciativa é perfeita: levar música de qualidade às camadas mais simples da população, e o Letras & Arte não poderia ficar alheio e nem deixar você de fora desta idéia!
Já estava com saudades! :)
Abraço a todos.

domingo, 22 de junho de 2008


(Praça do Ferreira - Século XIX)


"Na sala, uma moça esguia/recorta papeis de cor,/fazendo uma ninharia;/dorme um cão no corredor./e embaixo um nédio gatinho/Olha para o passarinho/como quem diz: - Si eu te apanho!..."(Antônio Sales)
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Segue abaixo o Programa de Instalação da Padaria Espiritual, movimento cultural cearense precursor das academias de letras em terras brasileiras...
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1) Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da "Terra da Luz", antigo Siará Grande, uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, denominada Padaria Espiritual, cujo fim é fornecer pão de espírito aos sócios em particular, e aos povos, em geral.
2) A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-Mór (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador das Coisas e das Gentes, que se chamará Olho da Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de Padeiros.
3) Fica limitado em vinte o número de sócios, inclusive a Diretoria, podendo-se, porém, admitir sócios honorários que se denominarão Padeiros-livres.
4) Depois da instalação da Padaria, só será admitido quem exibir uma peça literária ou qualquer outro trabalho artístico que for julgado decente pela maioria.
5) Haverá um livro especial para registrar-se o nome comum e o nome de guerra da cada Padeiro, sua naturalidade, estado, filiação e profissão a fim de poupar-se à Posteridade o trabalho dessas indagações.
6) Todos os Padeiros terão um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual poderão usar no exercício de suas árduas e humanitárias funções.
7) O distintivo da Padaria Espiritual será uma haste de trigo cruzada de uma pena, distintivo que será gravado na respectiva bandeira, que terá as cores nacionais.
8) As fornadas (sessões) se realizarão diariamente, à noite, à excepção das quintas-feiras, e aos domingos, ao meio-dia.
9) Durante as fornadas, os Padeiros farão a leitura de produções originais e inéditas, de quaisquer peças literárias que encontrarem na imprensa nacional ou estrangeira e falarão sobre as obras que lerem.
10) Far-se-ão dissertações biográficas acerca de sábios, poetas, artistas e literatos, a começar pelos nacionais, para o que se organizará uma lista, na qual serão designados, com a precisa antecedência, o dissertador e a vítima. Também se farão dissertações sobre datas nacionais ou estrangeiras.
11) Essas dissertações serão feitas em palestras, sendo proibido o tom oratório, sob pena de vaia.
12) Haverá um livro em que se registrará o resultado das fornadas com o maior laconismo possível, assinando todos os Padeiros presentes.
13) As despesas necessárias serão feitas mediante finta passada pelo Gaveta, que apresentará conta do dinheiro recebido e despendido.
14) E proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes.
15) Os Padeiros serão obrigados a comparecer à fornada, de flor à lapela, qualquer que seja a flor, com excepção da de chichá.
16) Aquele que durante uma sessão não disser uma pilhéria de espírito, pelo menos, fica obrigado a pagar no sábado café para todos os colegas. Quem disser uma pilhéria superiormente fina, pode ser dispensado da multa da semana seguinte.
17) O Padeiro que for pegado em flagrante delito de plagio, falado ou escrito, pagará café e charutos para todos os colegas.
18) Todos os Padeiros serão obrigados a defender seus colegas da agressão de qualquer cidadão ignáro e a trabalhar, com todas as forças, pelo bem estar mútuo.
19) É proibido fazer qualquer referência à rosa de Maiherbe e escrever nas folhas mais ou menos perfumadas dos álbuns.
20) Durante as fornadas, é permitido ter o chapéu na cabeça, exceto quando se falar em Homero, Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar porque, então, todos se descobrirão.
21) Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhos à Fauna e à Flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc. 22) Será dada a alcunha de "medonho" a todo sujeito que atentar publicamente contra o bom senso e o bom gosto artísticos.
23) Será preferível que os poetas da "Padaria" externem suas idéias em versos.
24) Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca, empregando-se para isso todos os meios lícitos e ilícitos.
25) Dirigir-se-á um apelo a todos os jornais do mundo, solicitando a remessa dos mesmos à biblioteca da "Padaria".
26) São considerados, desde já, inimigos naturais dos Padeiros - o Clero, os alfaiates e a polícia. Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear seu desagrado a essa gente.
27) Será registrado o fato de aparecer algum Padeiro com colarinho de nitidez e alvura contestáveis.
28) Será punido com expulsão imediata e sem apelo o Padeiro que recitar ao piano.
29) Organizar-se-á um calendário com os nomes de todos os grandes homens mortos, Haverá uma pedra para se escrever o nome do Santo do dia, nome que também será escrito na Ata, em seguida à data respectiva.
30) A "Avenida Caio Prado" é considerada a mais útil e a mais civilizada das instituições que felizmente nos regem, e, por isso, ficará sob o patrocínio da Padaria,
31) Encarregar-se-á um dos Padeiros de escrever uma monografia a respeito do incansável educador Professor Sobreira e suas obras.
32) A "Padaria" representará ao Governo do Estado contra o atual horário da Biblioteca Pública e indicará um outro mais consoante às necessidades dos famintos de idéias.
33) Nomear-se-ão comissões para apresentarem relatórios sobre os estabelecimentos de instrução pública e particular da Capital relatórios que serão publicados,
34) A Padaria Espiritual obriga-se a organizar, dentro do mais breve prazo possível, um Cancioneiro Popular, genuinamente cearense.
35) Logo que estejam montados todos os maquinismos, a Padaria publicará um jornal que, naturalmente, se chamará O Pão.
36) A Padaria tratará de angariar documentos para um livro contendo as aventuras do célebre e extraordinário Padre Verdeixa.
37) Publicar-se-á , no começo de cada ano, um almanaque ilustrado do Ceará contendo indicações uteis e inúteis, primores literários e anúncios de bacalhau.
38) A Padaria terá correspondentes em todas as capitais dos países civilizados, escolhendo-se para isso literatos de primeira água.
39) As mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio excetuadas: as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes.
40) A Padaria desejaria muito criar aulas noturnas para a infância desvalida; mas, como não tem tempo para isso, trabalhará por tornar obrigatório a instrução pública primada.
41) A Padaria declara desde já guerra de morte ao bendegó do "Cassino".
42) É expressamente proibido aos Padeiros receberem cartões de troco dos que atualmente se emitem nesta Capital.
43) No aniversário natalício dos Padeiros, ser-lhes-á oferecida uma refeição pelos colegas.
44) A Padaria declara embirrar solenemente com a secção "Para matar o tempo" do jornal "A Republica", e, assim, se dirigirá à redação desse jornal, pedindo para acabar com a mesma secção. 45) Empregar-se-ão todos os meios de compelir Mané Coco a terminar o serviço da "Avenida Ferreira".
46) O Padeiro que, por infelicidade, tiver um vizinho que aprenda clarineta, pistom ou qualquer outro instrumento irritante, dará parte à Padaria que trabalhará para pôr termo a semelhante suplício.
47) Pugnar-se-á pelo aformoseamento do Parque da Liberdade, e pela boa conservação da cidade, em geral.
48) Independente das disposições contidas nos artigos precedentes, a Padaria tomará a iniciativa de qualquer questão emergente que entenda com a Arte, com o bom Gosto, com o Progresso e com a Dignidade Humana. Amassado e assado na "Padaria Espiritual", aos 30 de Maio de 1892, Seguem-se as assinaturas dos padeiros presentes, em número de dezoito, faltando, portanto, duas assinaturas.


sexta-feira, 20 de junho de 2008

A Padaria Espiritual no Ceará e Sua Contribuição à Literatura Cearense

(Márcia de Oliveira)


Como filha legítima da Terra da Luz, achei que o Letras & Arte não poderia deixar de mostrar a vocês, leitores, um pouco de nossa cultura literária. Por isso, aqui vai um dos momentos mais originais e mais importantes da Literatura Cearense: os seis anos de existência da Padaria Espiritual, um dos grupos literários de maior repercussão de nossa história. Deliciem-se à vontade!


Fundada em 30 de maio de 1892, a Padaria Espiritual consistiu em uma agremiação cultural das mais importantes de nossa história obtendo, inclusive, forte repercussão nacional. Caracterizada por sempre florescer em torno de grupos literários, a Literatura Cearense recebe uma significativa contribuição no que diz respeito à arte e à intelectualidade do século XIX.


O grêmio de intelectuais formado por escritores, pintores, desenhistas e músicos foi representado por sua heterogeneidade, não só nas diversas artes, mas também nas diversas ideias e correntes estéticas em que mergulhou. Dela participaram nomes, como: Antônio Sales (fundador e idealizador do programa de instalação), Adolfo Caminha, Lívio Barreto, Lopes Filho, Raimundo Teófilo de Moura e muitos outros. Todos os sócios, ou melhor, todos os "padeiros" assinavam seus textos com pseudônimos, assim Antônio Sales era Moacir Jurema, Adolfo Caminha era Félix Guanabarino, Lívio Barreto era Lucas Bizarro e, ao longo de toda a sua jornada, foram 34 autores,cada um com um pseudo-nome específico.


Além de contar com um divertido e criativo programa de instalação, formado por 48 artigos que expressavam seu pensamento e objetivos, a Padaria contou com a ativa participação de Antônio Sales que, com sua veia publicitária enviou o programa de instalação para os mais renomados escritores do eixo Rio-São Paulo da época, sempre pedindo a eles adesão na colaboração do periódico O Pão, uma espécie de jornal que era "impresso", ou melhor, "amassado" semanalmente pela Padaria. Essa atitude de Sales deu certa notoriedade ao movimento em todo o país, fazendo do Ceará uma referência literária nacional.


Irônicos e irreverentes, os participantes possuíam em seus títulos a nomenclatura hierárquica das padarias reais: o padeiro-mor (presidente), os forneiros (secretários), o gaveta (tesoureiro), os padeiros (sócios) e o forno (sede oficial da Padaria). Também traziam no peito o lema: "alimentar com pão e espírito todos os sócios e a população em geral".


Toda a ironia e irreverência da Padaria se justificava por seu objetivo primordial: criticar a sociedade burguesa e as instituições que mantinham seu poderio ideológico, uma vez que os padeiros eram, em sua maioria, oriundos das camadas média e baixa da população e se mostravam descontentes com a classe burguesa, dentre outras coisas, por seu exacerbado apreço pela cultura europeia.


Em um dos itens de seu programa de instalação declaram seu desprezo pelos estrangeirismos presentes nas nossas obras literárias, permitindo apenas os neologismos do Dr. Castro Lopes, médico e gramático que inventava palavras exóticas como "runimol" para substituir os francesismos da língua como "avalanche", por exemplo. Esse forte caráter nacionalista também se reflete na proibição do uso de termos referentes à fauna e à flora estrangeiras em nossa Literatura. Tal característica repercutiu no fato de muitos historiadores e críticos literários enxergarem na Padaria Espiritual uma espécie de prenúncio do Modernismo, que trouxe esta como uma de suas principais preocupações, quase trinta anos mais tarde, na Semana de Arte Moderna, em 1922. No entanto, sabemos que o Modernismo só se consolidou efetivamente em terras cearenses na década de 40 com o grupo Clã.


Saudosistas, os padeiros procuravam resgatar a Fortaleza de aspectos naturais e simplórios de outrora. Estavam cansados das repetições excessivas e dos clichês literários, como a Rosa de Malherbe, por exemplo. Além de proibir o uso de qualquer referência a este poema, também proibiam os outros padeiros de escreverem nas folhas perfumadas dos álbuns femininos, uma característica considerada essencialmente burguesa nas mulheres da época. Também fizeram violentas críticas à construção de um enorme cassino no Passeio Público, que fora comparado a um meteoro caído na Bahia e alcunhado de "monstrengo" pelos padeiros.


Agraciada por seu humor e identidade próprios, a Padaria existiu durante 6 anos, passando por duas fases: a primeira, de 1892 a 1894, considerada a fase da pilhéria, do humor escrachado; a segunda, de 1894 a 1896 (quando de seu término em dezembro), apesar de mais séria e compenetrada, não fugiu completamente ao seu humor característico.


Sérios ou bem-humorados, os padeiros não perderam, em nenhum momento, a sua ousadia e nem por isso deixaram de fazer poesia. Apesar de inferiorizados, quando comparados aos intelectuais da Academia Francesa, não foram menos talentosos ou menos expressivos. Os padeiros de Antônio Sales, que iniciaram sua agremiação com pequenas reuniões no instinto Café Java da Avenida Ferreira (hoje Praça do Ferreira), juntos, durante seis anos, representaram o que houve de mais criativo, inovador e significativo para a cultura cearense.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

A (Des)construção da Identidade e o Deslocamento Antropológico em Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago


(Márcia Oliveira)


Em um lugar não identificado, um homem em seu carro, parado no sinal, não consegue dar a partida quando a luz verde se acende e, lá de dentro, clama por socorro, pois acabara de ficar cego subitamente. Enquanto muitos motoristas buzinam reclamando do trânsito que, devido ao ocorrido, ficara tumultuado, algumas pessoas vão até o carro ajudar o pobre homem que grita estar cego. Uma mulher, não identificada, tenta acalmá-lo dizendo que pode ser apenas um problema de nervos e sugere chamar uma ambulância. O cego pede que apenas o levem para casa, para junto de sua mulher. Um homem se aproxima e, gentilmente, se oferece para levá-lo. Ele aceita e os dois seguem para o seu apartamento. Lá, o tal homem se oferece para fazer-lhe companhia enquanto sua esposa não chega do trabalho. O cego diz que não precisa, que ficará bem; agradece ao homem e este vai embora. Mais tarde, quando do retorno da esposa, os dois descem para ir a uma clínica à procura de um profissional que o examine e descobrem que o carro havia sido roubado pelo gentil sujeito que o trouxera para casa. Desesperados com a cegueira, os dois seguem de táxi até à clínica. A mulher, com muito cuidado, segue o trajeto inteiro segurando a mão do marido. Na clínica, o paciente descreve sua cegueira como sendo uma brancura luminosa, como um mar de leite; uma luz que se acende. O médico se espanta com a falta de explicação para a cegueira abrupta, solicita alguns exames e pede que o paciente retorne a casa, prometendo estudar com cuidado seu caso. À noite, ao dormir o homem da cegueira branca sonha que está cego...


Parece que Saramago não quer sair mesmo das páginas do Letras & Arte. Este maravilhoso mago das Letras portuguesas se infiltrou em minha vida e tem me mostrado coisas que nunca sonhei ver. Em seu magnífico Ensaio Sobre a Cegueira, obra a qual se refere ao resumo do primeiro capítulo o texto aí em cima, o "mestre Sara" abre nossos olhos para o mundo real que nos cerca e que nos negamos (até de forma inconsciente) a enxergar. Além de uma evidente continuidade da identidade de sua escritura no que diz respeito aos aspectos formais, estilísticos e conteudísticos, logo neste 1º capítulo, o que mais atrai a atenção do leitor é a súbita cegueira de um homem desconhecido que, ao esperar a abertura do sinal verde dentro de seu carro, encontra-se impedido de dar a partida por estar completamente cego. Sua cegueira é completamente incomum, pois se trata de um fato repentino e sem explicação científica ou aparente. Sem falar que o pobre homem não passa a viver as trevas da escuridão; mas as trevas da brancura, uma vez que sua cegueira possui um branco luminoso e assemelha-se a um mergulho num mar de leite, o que a difere muito da cegueira convencional. Em seguida, durante toda a obra, todos vão cegando, inexplicavelmente, um a um; exceto a mulher do médico, o homem que atendeu em seu consultório o primeiro cego.


Do ponto de vista estilístico, a questão da identidade, muito recorrente em todos os romances de José Saramago, também é frisada aqui, de uma forma um tanto quanto diferente de Memorial do Convento, texto postado anteriormente, principalmente no que diz respeito ao nome (símbolo da identidade individualizada). Em Memorial do Convento, o signo do nome está muito associado à idéia de perpetuação da vida. Quando Blimunda diz a Baltasar que “pronunciar o nome de alguém é uma forma de mantê-lo vivo”, além da vida física, ela se refere também ao poder da palavra, que torna eterna tanto a verdade quanto a mentira.


No entanto, neste Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago prima por manter uma identidade aberta; coletiva (a critério do leitor). O fato de não nomear as personagens nos faz refletir que elas podem ser, na verdade, qualquer um.
O leitor é levado para um inusitado e criativo universo ficcional, onde experimenta, a cada página, a dolorosa trajetória dos cegos no romance, que já se inicia em um lugar não identificado, em um tempo não mencionado, que só é passível de reconhecimento de sua modernidade devido à presença de alguns elementos que a denotam, como: os carros, os semáforos, a faixa de pedestre, todos sinais que configuram um cenário urbanizado e moderno de uma cidade ocidental qualquer.


A Literatura, para Marc Augé, é uma das maiores formas de expressão cultural de um povo, e busca referências em uma espécie de “lugar antropológico”, que confere ao homem uma identidade, define a sua relação com o meio e o situa em um contexto histórico. Com a quebra dessa referência espaço-tempo-identidade, Saramago torna seu Ensaio Sobre a Cegueira um espelho, onde o leitor pode mirar-se e refletir sobre seu papel, enquanto cidadão do mundo, na construção da sociedade e das relações humanas. Não nomear os cegos (que vão cegando um a um) é uma maneira de universalizar a experiência abrangendo todas as pessoas. O primeiro grupo de cegos é levado pelas autoridades sanitárias a uma espécie de isolamento dentro de um manicômio desativado. Lá, são informados de que estão sozinhos. Não há um governo, não há um estado que se responsbilize por seus direitos e deveres. Tudo deve partir dos próprios cegos. E eles passam a se organizar dentro de um novo modelo social. Sentem a necessidade de se organizar hierarquicamente e elegem o médico para se responsabilizar pela manutenção da ordem, do equilíbrio e começam a viver com o mínimo, somente com o essencial à sobrevivência, o que nos parece uma maneira de nos fazer refletir sobre os problemas advindos de nossa falha organização social capitalista, assim como também uma maneira de nos mostrar a tentativa de um novo modelo organizacional, desta vez, semelhante ao modelo socialista marxista.

A descrição de Saramago sobre a cegueira também é um elemento intrigante e indispensável à compreensão da obra, principalmente, no momento em que, no consultório médico, o primeiro homem a cegar define a sua cegueira da seguinte forma: “é como uma luz que se acende”. (1995: p.22). Tal definição antecipa metaforicamente a todos nós, leitores e “cegos”, que o que pensávamos ser a visão, pode ser, na verdade, a própria cegueira.


O médico, representante da visão científica (e como é interessante falar de visão num ensaio sobre a cegueira!), intrigado com a inexplicável cegueira, reflete sobre a possibilidade de se tratar de um caso específico de agnosia que, segundo o Dicionário Aurélio, vem do grego agnosía e significa falta de conhecimento; perturbações dos órgãos sensoriais que impedem o doente de reconhecer a natureza e a significação das coisas em geral, a nível auditivo, visual ou táctil. Seria então a cegueira a ausência de conhecimento? Fechar os olhos para a realidade grotesca do mundo em que vivemos e pensar que este é o melhor dos mundos não é uma espécie de comodismo que nos leva à alienação? O ensaio pode ter sido escrito por Saramago, mas a reflexão fica a nosso critério. Este me parece o intuito primordial da escritura do autor de Todos os Nomes. E, por falar em nomes, não esqueçam da máxima que diz: "dentro de nós há uma coisa que não tem nome. Essa coisa é o que nós somos". Dentro do manicômio as pessoas não se apresentam pelos nomes, aliás, há um momento em que a mulher do médico diz: "é como se temessem dar-se a conhecer um ao outro". Os cegos são identificados por suas profissões ou pela maneira como cegaram, mas nunca por seus nomes. De fato, lá dentro os nomes não têm nenhuma importância. O que vemos ali é um novo modelo de organização social, onde todos têm que aprender a conviver com as diferenças e perceber que, na verdade, são todos iguais. Não há um governo, um estado; apenas um grupo de cegos vivendo talvez a parte mais dolorosa de sua trajetória: a descoberta do eu e do outro.


Além de sua já consagrada arqueologia verbal e da ausência de uma pontuação lógica, Saramago utiliza descrições substancialmente metafóricas (como a descrição da cegueira) que promovem fortes reflexões no leitor. Sua habitual ironia também marca presença logo no 1º capítulo, quando o paciente (cego) pergunta ao médico: “(...) e deverei seguir algum tratamento, tomar algum remédio, Por enquanto não lhe receitarei nada, seria estar a receitar às cegas. Aí está uma expressão apropriada, observou o cego”. (1995: p.24).


Também merece destaque a visão "saramaguiana" da mulher como um ponto de equilíbrio, sensibilidade e sabedoria. Não só aqui, mas em toda a sua obra, Saramago transforma a mulher em uma espécie de condutor que usa a intuição para guiá-lo à verdade. A excessiva visão, bem como a sensibilidade feminina auxiliam o autor no percurso da narrativa e o tornam onipresente e onisciente em sua obra. É como se graças às mulheres o mundo ainda não estivesse completamente perdido. A mulher enxerga aquilo que os outros não conseguem enxergar, assim como a mulher do médico é a única que não perde a visão, a única que, diante do caos, não perde o equilíbrio e a sensibilidade, pois em toda a história acompanha o marido no intuito de protegê-lo, de afagá-lo. Deve ser díficil ser a única que tem olhos numa terra de cegos!Também dentro do manicômio há a prostituta, que ampara maternalmente um garotinho estrábico que fora contaminado pelo "mal-branco" no consultório do médico. Esta visão sabiamente materna que Saramago tem da mulher está muito ligada à sua mãe, à sua avó e, sobretudo, à sua esposa, Pilar, uma mulher trinta anos mais jovem com quem vive há vinte e um anos e acredita que sem ela (sem sua doçura e sabedoria) não seria o homem que é hoje.


Mais uma vez impera a reflexão crítica do ponto de vista histórico-social na Literatura. Saramago, com sua Literatura socialmente interessada, não mede esforços para promover a reflexão de que precisamos abrir os olhos diante da cegueira inconsciente que nos possui. Compreender que nossa "visão" é cega "às claras" já é um primeiro passo para se chegar ao conhecimento da real necessidade de mudança humana, cada vez mais desencorajada em nosso mundo. Em recente entrevista ao Jornal da Globo, Saramago declarou que se pudesse voltar no tempo e reescrever sua história desde a sua infância, a escreveria exatamente como foi, sem mudar nada. Com toda a pobreza, a pouca comida, o sofrimento, os pais e avós analfabetos, tudo seria fielmente reproduzido; pois, para ele, foi este período doloroso e simples de sua vida que o fez enxergar as diferenças sociais, a pureza da simplicidade e ter essa visão crítica da realidade que hoje deposita de forma tão reveladora em suas obras. E assim como os cegos da caverna de Platão, os cegos de Saramago também reconhecem que chegar ao conhecimento é algo sempre muito doloroso.

Nota: O filme Blindness, baseado na obra Ensaio Sobre a Cegueira e dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, foi recentemente premiado em Cannes e deve chegar às telas brasileiras em setembro deste ano. Vale a pena conferir uma produção cujo roteiro é baseado em um texto de originalidade inigualável e dirigida por um brasileiro genial. Recomendo! Assista agora ao vídeo da reação de Saramago ao ver o filme, pela 1ª vez, ao lado do diretor Fernando Meirelles:

http://www.youtube.com/watch?v=Y1hzDzAvJOY

terça-feira, 27 de maio de 2008

O Contexto Econômico Português Refletido em Memorial do Convento, de José Saramago:

(Márcia Oliveira)

O romance Memorial do Convento, de José Saramago representa um avanço no campo da narrativa histórica. A obra perpassa um período de aproximadamente trinta anos da história de Portugal à época da Inquisição. Nela, Saramago critica Portugal do século XVIII que, apesar de ser um país rico e abundante, submete seu povo à miséria e à exploração. Suas personagens encontram-se distribuídas entre o luxo e o requinte da corte e a pobreza e simplicidade da vida popular.


Os principais acontecimentos giram em torno dos protagonistas padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, um homem que, apesar de religioso, não corresponde às injustiças do Santo Ofício e dedica toda a sua vida à realização do sonho libertador de construção da passarola, aeróstato que irá sobrevoar o mundo de ponta a ponta; Baltasar Sete-Sóis, um ex-soldado de guerra que tem na sua pouca instrução e simplicidade grandes reflexos da sabedoria humana e sua Blimunda Sete-Luas, mulher de exagerada visão que pode enxergar através do corpo e das coisas. A visão de Blimunda é a janela de Saramago que o possibilita enxergar a história do século XVIII com todos os seus deslizes morais, políticos e religiosos, época marcada, principalmente, pelo cumprimento da promessa do rei D. João V de construir um enorme convento em Mafra, caso a divina providência lhe concedesse um herdeiro para o trono.


A obra nos mostra que o governo de D. João V foi caracterizado pelos gastos exagerados, pelos excessos com as importações e exportações (em especial o ouro vindo do Brasil e o trigo da Irlanda), por suas construções megalômanas (como o convento de Mafra), por sua austeridade e vaidade e, principalmente, pela exploração e miséria a qual submetia o povo.


Tudo o que era extraído das colônias apenas transitava pela Metrópole. O povo não usufruía as mercadorias que, em sua maioria, eram vendidas sob altos preços e repassadas a outros países como exportação. Saramago deixa clara a sua visão crítica à falência de uma política de navegação fundamentada na exploração colonial e na ausência de uma política de fixação interna em Portugal.


Utilizando um certo mascaramento de vozes como recurso estilístico em sua fala, além de uma fina ironia, o narrador denuncia os excessos com os carregamentos de trigo vindos da Irlanda que, apesar de suficientemente abundantes para alimentar toda a população portuguesa, não evitavam a falta do pão, alimento indispensável à vida, sobre a mesa do povo lusitano:


“Levar este pão à boca é gesto fácil, excelente de fazer se a fome o reclama, portanto alimento do corpo, benefício do lavrador, provavelmente maior benefício de alguns que entre a foice e os dentes souberam meter mãos de levar e trazer e bolsas de guardar, e esta é a regra. Não há em Portugal trigo que baste ao perpétuo apetite que os portugueses têm de pão, parece que não sabem comer outra coisa, por isso os estrangeiros que cá moram, doridos das nossas necessidades, que em maior volume frutificam que sementes de abóbora, mandam vir, das suas próprias e outras terras, frotas de cem navios carregados de cereal”. (2007: p.56)


Segundo Roland Barthes, “a escrita romanesca tem por função colocar a máscara e, ao mesmo tempo, apontá-la. Sendo assim, todo romancista articularia mentiras críveis, nas quais a sinceridade precisa de signos falsos para durar e ser consumida. O produto desta ambigüidade é justamente a escritura, o texto final”. (1971: p.47). Saramago utiliza suas máscaras estilísticas para apontar seus pontos de vista de forma crítica e argumentada. Um dos principais exemplos disso é justamente o constante teor reflexivo de seus narradores em toda a sua produção literária. Em Memorial do Convento, há várias reflexões sobre a justiça, sobre a loucura, sobre o sonho, além das críticas a instituições que se alimentam de relações distorcidas de poder, como a Igreja Católica, por exemplo. A Literatura de Saramago é uma Literatura socialmente interessada e não funciona só como um “espelho da realidade”. Saramago, convencido de que a arte é completamente necessária à sociedade, se conscientizou de que:


O verdadeiro conteúdo da obra de arte torna-se o seu modo de ver e de julgar o mundo, sendo só assim, na medida em que transcende a falsa dicotomia entre forma e conteúdo, que ela mantém seu compromisso com a realidade”. (OLIVEIRA FILHO, 1990: p.142)


Toda a obra de Saramago reflete, de alguma forma, uma problematização entre história e ficção. Tal problematização é chamada por Linda Hutcheon de Metaficção Historiográfica (HUTCHEON, 1993: p.11), e tem por características a auto-reflexão e a apropriação de acontecimentos e personagens históricos. Esta marca na Literatura de Saramago a aproxima muito da Literatura Hispano-americana produzida por García Márquez e Alejo Carpentier, por exemplo.


Além de sua consagrada arqueologia verbal e de sua polifonia de vozes, o mestre Sara também utiliza outros recursos estilísticos interessantes para denunciar as falhas do Mercantilismo português, como a antecipação de acontecimentos futuros, observada no trecho:


“Tanto mais que se fala em próxima chegada de uma frota da Holanda carregada do mesmo gênero, mas desta virá a saber-se que a assaltou uma esquadra francesa quase na entrada da barra, e assim o preço, que ia baixar, não baixa, se for preciso deita-se fogo a um celeiro ou dois, mandando em seguida apregoar a falta que o trigo ardido já está fazendo, quando julgávamos que havia tanto e de sobra”. (2007: p.56-57)


Apesar de não ser o elemento central da narrativa, o contexto econômico português refletido na obra submete as personagens a vários conflitos. A vontade repressora do rei, oriunda de sua vaidade, ao iniciar as construções em Mafra, faz com que muitas pessoas, sem outras opções de ganhar a vida, trabalhem arduamente nas obras do convento, sacrificando-se e até mesmo morrendo em virtude das arriscadas condições de trabalho dificultadas pela imensidão da empreitada.


Ao contar a história dos operários que trabalharam em Mafra e nomeá-los, Saramago encontra uma maneira de registrar e dar voz aos homens que lutaram, se sacrificaram ou até mesmo morreram em nome de sua integridade, de seus sonhos e da busca de sua sobrevivência, e junto com a vontade do padre Bartolomeu de concluir o invento da passarola para ver como a terra é bela e imensa lá de cima fica clara a expressão da vontade humana de não mais se deixar oprimir e de não mais se deixar esquecer. A história tradicional que referia-se ao convento de Mafra como um grande feito realizado por D. João V agora se inverte: é contada sob o ponto de vista do oprimido; não sob o ponto de vista do opressor. O convento de Mafra tornou-se uma realização do povo heróico que sofreu e morreu para a sua construção e, devido ao controle burguês das fontes históricas, acabou esquecido entre as colunas. Em Memorial do Convento, Saramago recria a história e, através de uma nova linguagem, de uma árdua visão crítica e de um novo modelo ficcional, o povo deixa de ser coadjuvante e passa a ser sujeito histórico de seu tempo.





Referências Bibliográficas:



SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 33ª edição.Rio de janeiro; Bertrand Brasil, 2007.
BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escritura. Rio de janeiro; Bertrand Brasil, 1995.
OLIVEIRA FILHO, O.J.de. Saramago e a Ficção Latino-americana. Revista de Letras; São Paulo, 1990 n.30.p.141-152.
SILVA, Tereza Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a História e a Ficção: uma saga de portugueses. Lisboa; Publicações Dom Quixote, 1989.