domingo, 22 de junho de 2008


(Praça do Ferreira - Século XIX)


"Na sala, uma moça esguia/recorta papeis de cor,/fazendo uma ninharia;/dorme um cão no corredor./e embaixo um nédio gatinho/Olha para o passarinho/como quem diz: - Si eu te apanho!..."(Antônio Sales)
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Segue abaixo o Programa de Instalação da Padaria Espiritual, movimento cultural cearense precursor das academias de letras em terras brasileiras...
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1) Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da "Terra da Luz", antigo Siará Grande, uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, denominada Padaria Espiritual, cujo fim é fornecer pão de espírito aos sócios em particular, e aos povos, em geral.
2) A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-Mór (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador das Coisas e das Gentes, que se chamará Olho da Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de Padeiros.
3) Fica limitado em vinte o número de sócios, inclusive a Diretoria, podendo-se, porém, admitir sócios honorários que se denominarão Padeiros-livres.
4) Depois da instalação da Padaria, só será admitido quem exibir uma peça literária ou qualquer outro trabalho artístico que for julgado decente pela maioria.
5) Haverá um livro especial para registrar-se o nome comum e o nome de guerra da cada Padeiro, sua naturalidade, estado, filiação e profissão a fim de poupar-se à Posteridade o trabalho dessas indagações.
6) Todos os Padeiros terão um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual poderão usar no exercício de suas árduas e humanitárias funções.
7) O distintivo da Padaria Espiritual será uma haste de trigo cruzada de uma pena, distintivo que será gravado na respectiva bandeira, que terá as cores nacionais.
8) As fornadas (sessões) se realizarão diariamente, à noite, à excepção das quintas-feiras, e aos domingos, ao meio-dia.
9) Durante as fornadas, os Padeiros farão a leitura de produções originais e inéditas, de quaisquer peças literárias que encontrarem na imprensa nacional ou estrangeira e falarão sobre as obras que lerem.
10) Far-se-ão dissertações biográficas acerca de sábios, poetas, artistas e literatos, a começar pelos nacionais, para o que se organizará uma lista, na qual serão designados, com a precisa antecedência, o dissertador e a vítima. Também se farão dissertações sobre datas nacionais ou estrangeiras.
11) Essas dissertações serão feitas em palestras, sendo proibido o tom oratório, sob pena de vaia.
12) Haverá um livro em que se registrará o resultado das fornadas com o maior laconismo possível, assinando todos os Padeiros presentes.
13) As despesas necessárias serão feitas mediante finta passada pelo Gaveta, que apresentará conta do dinheiro recebido e despendido.
14) E proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes.
15) Os Padeiros serão obrigados a comparecer à fornada, de flor à lapela, qualquer que seja a flor, com excepção da de chichá.
16) Aquele que durante uma sessão não disser uma pilhéria de espírito, pelo menos, fica obrigado a pagar no sábado café para todos os colegas. Quem disser uma pilhéria superiormente fina, pode ser dispensado da multa da semana seguinte.
17) O Padeiro que for pegado em flagrante delito de plagio, falado ou escrito, pagará café e charutos para todos os colegas.
18) Todos os Padeiros serão obrigados a defender seus colegas da agressão de qualquer cidadão ignáro e a trabalhar, com todas as forças, pelo bem estar mútuo.
19) É proibido fazer qualquer referência à rosa de Maiherbe e escrever nas folhas mais ou menos perfumadas dos álbuns.
20) Durante as fornadas, é permitido ter o chapéu na cabeça, exceto quando se falar em Homero, Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar porque, então, todos se descobrirão.
21) Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhos à Fauna e à Flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc. 22) Será dada a alcunha de "medonho" a todo sujeito que atentar publicamente contra o bom senso e o bom gosto artísticos.
23) Será preferível que os poetas da "Padaria" externem suas idéias em versos.
24) Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca, empregando-se para isso todos os meios lícitos e ilícitos.
25) Dirigir-se-á um apelo a todos os jornais do mundo, solicitando a remessa dos mesmos à biblioteca da "Padaria".
26) São considerados, desde já, inimigos naturais dos Padeiros - o Clero, os alfaiates e a polícia. Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear seu desagrado a essa gente.
27) Será registrado o fato de aparecer algum Padeiro com colarinho de nitidez e alvura contestáveis.
28) Será punido com expulsão imediata e sem apelo o Padeiro que recitar ao piano.
29) Organizar-se-á um calendário com os nomes de todos os grandes homens mortos, Haverá uma pedra para se escrever o nome do Santo do dia, nome que também será escrito na Ata, em seguida à data respectiva.
30) A "Avenida Caio Prado" é considerada a mais útil e a mais civilizada das instituições que felizmente nos regem, e, por isso, ficará sob o patrocínio da Padaria,
31) Encarregar-se-á um dos Padeiros de escrever uma monografia a respeito do incansável educador Professor Sobreira e suas obras.
32) A "Padaria" representará ao Governo do Estado contra o atual horário da Biblioteca Pública e indicará um outro mais consoante às necessidades dos famintos de idéias.
33) Nomear-se-ão comissões para apresentarem relatórios sobre os estabelecimentos de instrução pública e particular da Capital relatórios que serão publicados,
34) A Padaria Espiritual obriga-se a organizar, dentro do mais breve prazo possível, um Cancioneiro Popular, genuinamente cearense.
35) Logo que estejam montados todos os maquinismos, a Padaria publicará um jornal que, naturalmente, se chamará O Pão.
36) A Padaria tratará de angariar documentos para um livro contendo as aventuras do célebre e extraordinário Padre Verdeixa.
37) Publicar-se-á , no começo de cada ano, um almanaque ilustrado do Ceará contendo indicações uteis e inúteis, primores literários e anúncios de bacalhau.
38) A Padaria terá correspondentes em todas as capitais dos países civilizados, escolhendo-se para isso literatos de primeira água.
39) As mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio excetuadas: as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes.
40) A Padaria desejaria muito criar aulas noturnas para a infância desvalida; mas, como não tem tempo para isso, trabalhará por tornar obrigatório a instrução pública primada.
41) A Padaria declara desde já guerra de morte ao bendegó do "Cassino".
42) É expressamente proibido aos Padeiros receberem cartões de troco dos que atualmente se emitem nesta Capital.
43) No aniversário natalício dos Padeiros, ser-lhes-á oferecida uma refeição pelos colegas.
44) A Padaria declara embirrar solenemente com a secção "Para matar o tempo" do jornal "A Republica", e, assim, se dirigirá à redação desse jornal, pedindo para acabar com a mesma secção. 45) Empregar-se-ão todos os meios de compelir Mané Coco a terminar o serviço da "Avenida Ferreira".
46) O Padeiro que, por infelicidade, tiver um vizinho que aprenda clarineta, pistom ou qualquer outro instrumento irritante, dará parte à Padaria que trabalhará para pôr termo a semelhante suplício.
47) Pugnar-se-á pelo aformoseamento do Parque da Liberdade, e pela boa conservação da cidade, em geral.
48) Independente das disposições contidas nos artigos precedentes, a Padaria tomará a iniciativa de qualquer questão emergente que entenda com a Arte, com o bom Gosto, com o Progresso e com a Dignidade Humana. Amassado e assado na "Padaria Espiritual", aos 30 de Maio de 1892, Seguem-se as assinaturas dos padeiros presentes, em número de dezoito, faltando, portanto, duas assinaturas.


sexta-feira, 20 de junho de 2008

A Padaria Espiritual no Ceará e Sua Contribuição à Literatura Cearense

(Márcia de Oliveira)


Como filha legítima da Terra da Luz, achei que o Letras & Arte não poderia deixar de mostrar a vocês, leitores, um pouco de nossa cultura literária. Por isso, aqui vai um dos momentos mais originais e mais importantes da Literatura Cearense: os seis anos de existência da Padaria Espiritual, um dos grupos literários de maior repercussão de nossa história. Deliciem-se à vontade!


Fundada em 30 de maio de 1892, a Padaria Espiritual consistiu em uma agremiação cultural das mais importantes de nossa história obtendo, inclusive, forte repercussão nacional. Caracterizada por sempre florescer em torno de grupos literários, a Literatura Cearense recebe uma significativa contribuição no que diz respeito à arte e à intelectualidade do século XIX.


O grêmio de intelectuais formado por escritores, pintores, desenhistas e músicos foi representado por sua heterogeneidade, não só nas diversas artes, mas também nas diversas ideias e correntes estéticas em que mergulhou. Dela participaram nomes, como: Antônio Sales (fundador e idealizador do programa de instalação), Adolfo Caminha, Lívio Barreto, Lopes Filho, Raimundo Teófilo de Moura e muitos outros. Todos os sócios, ou melhor, todos os "padeiros" assinavam seus textos com pseudônimos, assim Antônio Sales era Moacir Jurema, Adolfo Caminha era Félix Guanabarino, Lívio Barreto era Lucas Bizarro e, ao longo de toda a sua jornada, foram 34 autores,cada um com um pseudo-nome específico.


Além de contar com um divertido e criativo programa de instalação, formado por 48 artigos que expressavam seu pensamento e objetivos, a Padaria contou com a ativa participação de Antônio Sales que, com sua veia publicitária enviou o programa de instalação para os mais renomados escritores do eixo Rio-São Paulo da época, sempre pedindo a eles adesão na colaboração do periódico O Pão, uma espécie de jornal que era "impresso", ou melhor, "amassado" semanalmente pela Padaria. Essa atitude de Sales deu certa notoriedade ao movimento em todo o país, fazendo do Ceará uma referência literária nacional.


Irônicos e irreverentes, os participantes possuíam em seus títulos a nomenclatura hierárquica das padarias reais: o padeiro-mor (presidente), os forneiros (secretários), o gaveta (tesoureiro), os padeiros (sócios) e o forno (sede oficial da Padaria). Também traziam no peito o lema: "alimentar com pão e espírito todos os sócios e a população em geral".


Toda a ironia e irreverência da Padaria se justificava por seu objetivo primordial: criticar a sociedade burguesa e as instituições que mantinham seu poderio ideológico, uma vez que os padeiros eram, em sua maioria, oriundos das camadas média e baixa da população e se mostravam descontentes com a classe burguesa, dentre outras coisas, por seu exacerbado apreço pela cultura europeia.


Em um dos itens de seu programa de instalação declaram seu desprezo pelos estrangeirismos presentes nas nossas obras literárias, permitindo apenas os neologismos do Dr. Castro Lopes, médico e gramático que inventava palavras exóticas como "runimol" para substituir os francesismos da língua como "avalanche", por exemplo. Esse forte caráter nacionalista também se reflete na proibição do uso de termos referentes à fauna e à flora estrangeiras em nossa Literatura. Tal característica repercutiu no fato de muitos historiadores e críticos literários enxergarem na Padaria Espiritual uma espécie de prenúncio do Modernismo, que trouxe esta como uma de suas principais preocupações, quase trinta anos mais tarde, na Semana de Arte Moderna, em 1922. No entanto, sabemos que o Modernismo só se consolidou efetivamente em terras cearenses na década de 40 com o grupo Clã.


Saudosistas, os padeiros procuravam resgatar a Fortaleza de aspectos naturais e simplórios de outrora. Estavam cansados das repetições excessivas e dos clichês literários, como a Rosa de Malherbe, por exemplo. Além de proibir o uso de qualquer referência a este poema, também proibiam os outros padeiros de escreverem nas folhas perfumadas dos álbuns femininos, uma característica considerada essencialmente burguesa nas mulheres da época. Também fizeram violentas críticas à construção de um enorme cassino no Passeio Público, que fora comparado a um meteoro caído na Bahia e alcunhado de "monstrengo" pelos padeiros.


Agraciada por seu humor e identidade próprios, a Padaria existiu durante 6 anos, passando por duas fases: a primeira, de 1892 a 1894, considerada a fase da pilhéria, do humor escrachado; a segunda, de 1894 a 1896 (quando de seu término em dezembro), apesar de mais séria e compenetrada, não fugiu completamente ao seu humor característico.


Sérios ou bem-humorados, os padeiros não perderam, em nenhum momento, a sua ousadia e nem por isso deixaram de fazer poesia. Apesar de inferiorizados, quando comparados aos intelectuais da Academia Francesa, não foram menos talentosos ou menos expressivos. Os padeiros de Antônio Sales, que iniciaram sua agremiação com pequenas reuniões no instinto Café Java da Avenida Ferreira (hoje Praça do Ferreira), juntos, durante seis anos, representaram o que houve de mais criativo, inovador e significativo para a cultura cearense.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

A (Des)construção da Identidade e o Deslocamento Antropológico em Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago


(Márcia Oliveira)


Em um lugar não identificado, um homem em seu carro, parado no sinal, não consegue dar a partida quando a luz verde se acende e, lá de dentro, clama por socorro, pois acabara de ficar cego subitamente. Enquanto muitos motoristas buzinam reclamando do trânsito que, devido ao ocorrido, ficara tumultuado, algumas pessoas vão até o carro ajudar o pobre homem que grita estar cego. Uma mulher, não identificada, tenta acalmá-lo dizendo que pode ser apenas um problema de nervos e sugere chamar uma ambulância. O cego pede que apenas o levem para casa, para junto de sua mulher. Um homem se aproxima e, gentilmente, se oferece para levá-lo. Ele aceita e os dois seguem para o seu apartamento. Lá, o tal homem se oferece para fazer-lhe companhia enquanto sua esposa não chega do trabalho. O cego diz que não precisa, que ficará bem; agradece ao homem e este vai embora. Mais tarde, quando do retorno da esposa, os dois descem para ir a uma clínica à procura de um profissional que o examine e descobrem que o carro havia sido roubado pelo gentil sujeito que o trouxera para casa. Desesperados com a cegueira, os dois seguem de táxi até à clínica. A mulher, com muito cuidado, segue o trajeto inteiro segurando a mão do marido. Na clínica, o paciente descreve sua cegueira como sendo uma brancura luminosa, como um mar de leite; uma luz que se acende. O médico se espanta com a falta de explicação para a cegueira abrupta, solicita alguns exames e pede que o paciente retorne a casa, prometendo estudar com cuidado seu caso. À noite, ao dormir o homem da cegueira branca sonha que está cego...


Parece que Saramago não quer sair mesmo das páginas do Letras & Arte. Este maravilhoso mago das Letras portuguesas se infiltrou em minha vida e tem me mostrado coisas que nunca sonhei ver. Em seu magnífico Ensaio Sobre a Cegueira, obra a qual se refere ao resumo do primeiro capítulo o texto aí em cima, o "mestre Sara" abre nossos olhos para o mundo real que nos cerca e que nos negamos (até de forma inconsciente) a enxergar. Além de uma evidente continuidade da identidade de sua escritura no que diz respeito aos aspectos formais, estilísticos e conteudísticos, logo neste 1º capítulo, o que mais atrai a atenção do leitor é a súbita cegueira de um homem desconhecido que, ao esperar a abertura do sinal verde dentro de seu carro, encontra-se impedido de dar a partida por estar completamente cego. Sua cegueira é completamente incomum, pois se trata de um fato repentino e sem explicação científica ou aparente. Sem falar que o pobre homem não passa a viver as trevas da escuridão; mas as trevas da brancura, uma vez que sua cegueira possui um branco luminoso e assemelha-se a um mergulho num mar de leite, o que a difere muito da cegueira convencional. Em seguida, durante toda a obra, todos vão cegando, inexplicavelmente, um a um; exceto a mulher do médico, o homem que atendeu em seu consultório o primeiro cego.


Do ponto de vista estilístico, a questão da identidade, muito recorrente em todos os romances de José Saramago, também é frisada aqui, de uma forma um tanto quanto diferente de Memorial do Convento, texto postado anteriormente, principalmente no que diz respeito ao nome (símbolo da identidade individualizada). Em Memorial do Convento, o signo do nome está muito associado à idéia de perpetuação da vida. Quando Blimunda diz a Baltasar que “pronunciar o nome de alguém é uma forma de mantê-lo vivo”, além da vida física, ela se refere também ao poder da palavra, que torna eterna tanto a verdade quanto a mentira.


No entanto, neste Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago prima por manter uma identidade aberta; coletiva (a critério do leitor). O fato de não nomear as personagens nos faz refletir que elas podem ser, na verdade, qualquer um.
O leitor é levado para um inusitado e criativo universo ficcional, onde experimenta, a cada página, a dolorosa trajetória dos cegos no romance, que já se inicia em um lugar não identificado, em um tempo não mencionado, que só é passível de reconhecimento de sua modernidade devido à presença de alguns elementos que a denotam, como: os carros, os semáforos, a faixa de pedestre, todos sinais que configuram um cenário urbanizado e moderno de uma cidade ocidental qualquer.


A Literatura, para Marc Augé, é uma das maiores formas de expressão cultural de um povo, e busca referências em uma espécie de “lugar antropológico”, que confere ao homem uma identidade, define a sua relação com o meio e o situa em um contexto histórico. Com a quebra dessa referência espaço-tempo-identidade, Saramago torna seu Ensaio Sobre a Cegueira um espelho, onde o leitor pode mirar-se e refletir sobre seu papel, enquanto cidadão do mundo, na construção da sociedade e das relações humanas. Não nomear os cegos (que vão cegando um a um) é uma maneira de universalizar a experiência abrangendo todas as pessoas. O primeiro grupo de cegos é levado pelas autoridades sanitárias a uma espécie de isolamento dentro de um manicômio desativado. Lá, são informados de que estão sozinhos. Não há um governo, não há um estado que se responsbilize por seus direitos e deveres. Tudo deve partir dos próprios cegos. E eles passam a se organizar dentro de um novo modelo social. Sentem a necessidade de se organizar hierarquicamente e elegem o médico para se responsabilizar pela manutenção da ordem, do equilíbrio e começam a viver com o mínimo, somente com o essencial à sobrevivência, o que nos parece uma maneira de nos fazer refletir sobre os problemas advindos de nossa falha organização social capitalista, assim como também uma maneira de nos mostrar a tentativa de um novo modelo organizacional, desta vez, semelhante ao modelo socialista marxista.

A descrição de Saramago sobre a cegueira também é um elemento intrigante e indispensável à compreensão da obra, principalmente, no momento em que, no consultório médico, o primeiro homem a cegar define a sua cegueira da seguinte forma: “é como uma luz que se acende”. (1995: p.22). Tal definição antecipa metaforicamente a todos nós, leitores e “cegos”, que o que pensávamos ser a visão, pode ser, na verdade, a própria cegueira.


O médico, representante da visão científica (e como é interessante falar de visão num ensaio sobre a cegueira!), intrigado com a inexplicável cegueira, reflete sobre a possibilidade de se tratar de um caso específico de agnosia que, segundo o Dicionário Aurélio, vem do grego agnosía e significa falta de conhecimento; perturbações dos órgãos sensoriais que impedem o doente de reconhecer a natureza e a significação das coisas em geral, a nível auditivo, visual ou táctil. Seria então a cegueira a ausência de conhecimento? Fechar os olhos para a realidade grotesca do mundo em que vivemos e pensar que este é o melhor dos mundos não é uma espécie de comodismo que nos leva à alienação? O ensaio pode ter sido escrito por Saramago, mas a reflexão fica a nosso critério. Este me parece o intuito primordial da escritura do autor de Todos os Nomes. E, por falar em nomes, não esqueçam da máxima que diz: "dentro de nós há uma coisa que não tem nome. Essa coisa é o que nós somos". Dentro do manicômio as pessoas não se apresentam pelos nomes, aliás, há um momento em que a mulher do médico diz: "é como se temessem dar-se a conhecer um ao outro". Os cegos são identificados por suas profissões ou pela maneira como cegaram, mas nunca por seus nomes. De fato, lá dentro os nomes não têm nenhuma importância. O que vemos ali é um novo modelo de organização social, onde todos têm que aprender a conviver com as diferenças e perceber que, na verdade, são todos iguais. Não há um governo, um estado; apenas um grupo de cegos vivendo talvez a parte mais dolorosa de sua trajetória: a descoberta do eu e do outro.


Além de sua já consagrada arqueologia verbal e da ausência de uma pontuação lógica, Saramago utiliza descrições substancialmente metafóricas (como a descrição da cegueira) que promovem fortes reflexões no leitor. Sua habitual ironia também marca presença logo no 1º capítulo, quando o paciente (cego) pergunta ao médico: “(...) e deverei seguir algum tratamento, tomar algum remédio, Por enquanto não lhe receitarei nada, seria estar a receitar às cegas. Aí está uma expressão apropriada, observou o cego”. (1995: p.24).


Também merece destaque a visão "saramaguiana" da mulher como um ponto de equilíbrio, sensibilidade e sabedoria. Não só aqui, mas em toda a sua obra, Saramago transforma a mulher em uma espécie de condutor que usa a intuição para guiá-lo à verdade. A excessiva visão, bem como a sensibilidade feminina auxiliam o autor no percurso da narrativa e o tornam onipresente e onisciente em sua obra. É como se graças às mulheres o mundo ainda não estivesse completamente perdido. A mulher enxerga aquilo que os outros não conseguem enxergar, assim como a mulher do médico é a única que não perde a visão, a única que, diante do caos, não perde o equilíbrio e a sensibilidade, pois em toda a história acompanha o marido no intuito de protegê-lo, de afagá-lo. Deve ser díficil ser a única que tem olhos numa terra de cegos!Também dentro do manicômio há a prostituta, que ampara maternalmente um garotinho estrábico que fora contaminado pelo "mal-branco" no consultório do médico. Esta visão sabiamente materna que Saramago tem da mulher está muito ligada à sua mãe, à sua avó e, sobretudo, à sua esposa, Pilar, uma mulher trinta anos mais jovem com quem vive há vinte e um anos e acredita que sem ela (sem sua doçura e sabedoria) não seria o homem que é hoje.


Mais uma vez impera a reflexão crítica do ponto de vista histórico-social na Literatura. Saramago, com sua Literatura socialmente interessada, não mede esforços para promover a reflexão de que precisamos abrir os olhos diante da cegueira inconsciente que nos possui. Compreender que nossa "visão" é cega "às claras" já é um primeiro passo para se chegar ao conhecimento da real necessidade de mudança humana, cada vez mais desencorajada em nosso mundo. Em recente entrevista ao Jornal da Globo, Saramago declarou que se pudesse voltar no tempo e reescrever sua história desde a sua infância, a escreveria exatamente como foi, sem mudar nada. Com toda a pobreza, a pouca comida, o sofrimento, os pais e avós analfabetos, tudo seria fielmente reproduzido; pois, para ele, foi este período doloroso e simples de sua vida que o fez enxergar as diferenças sociais, a pureza da simplicidade e ter essa visão crítica da realidade que hoje deposita de forma tão reveladora em suas obras. E assim como os cegos da caverna de Platão, os cegos de Saramago também reconhecem que chegar ao conhecimento é algo sempre muito doloroso.

Nota: O filme Blindness, baseado na obra Ensaio Sobre a Cegueira e dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, foi recentemente premiado em Cannes e deve chegar às telas brasileiras em setembro deste ano. Vale a pena conferir uma produção cujo roteiro é baseado em um texto de originalidade inigualável e dirigida por um brasileiro genial. Recomendo! Assista agora ao vídeo da reação de Saramago ao ver o filme, pela 1ª vez, ao lado do diretor Fernando Meirelles:

http://www.youtube.com/watch?v=Y1hzDzAvJOY