segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Apenas um grito


(Márcia de Oliveira)
Outro dia, fui a uma escola da rede particular de ensino aqui de minha cidade tentar uma vaga de professora de Literatura (coisa que adoro!), mas acabei não ficando. Ainda bem!
O motivo é que a escola me pareceu um tanto quanto retrógrada, exploradora e coordenada por pessoas que não sabiam a diferença entre um camelo e um cachorro (rsrs). Aliás, esta escola era exatamente igual a muitas outras também particulares, também empresas, e não escolas.
Durante as muitas horas que o coordenador me fez esperar (só para me dizer um não), tive o prazer (ou não!) de conversar com outros professores que lá já trabalhavam e, alguns deles, apesar de já possuirem certa experiência, me pareceram tão ou mais iniciantes do que eu. Tenho pouca experiência em sala de aula, que se resume facilmente a dois estágios em escolas públicas e algumas aulas particulares que, de vez em quando, me arrisco a dar, e algumas vezes nem foram particulares, foram gratuitas mesmo, para quem não podia pagar.
Para a maioria das escolas isso é quase nada. E de fato o é. Frente a profissionais com 10, 15, 20 anos de experiência, realmente sou menos do que uma iniciante, uma reles aprendiz. Porém, cabotinismos à parte, sinto que tenho algo que muitos experts no assunto não têm: sensibilidade (ao lidar com pessoas) e vontade de aprender. Tudo isso unido a um forte desejo de mudar. Mudar a realidade na educação, tal qual ela anda.
Não gosto, por exemplo, do ensino de Literatura nas escolas, e me refiro à maneira como ela é repassada aos alunos, principalmente, aos alunos do ensino médio. Uma coisa mecânica, decoreba pura, totalmente ligada ao vestibular. A principal universidade do Ceará lança todos os anos uma lista com 10 títulos de obras literárias e sempre uma ou duas delas poderão ser aplicadas na prova de Língua Portuguesa. No entanto, o que eles acreditam estimular nestes alunos a leitura e o prazer de conhecer um pouco mais de nossa Literatura, produz neles um efeito completamente oposto. Primeiro, porque estes alunos (ou pelo menos a maioria deles) só têm em mente um único propósito: a aprovação, o ingresso na universidade pública que, apesar dos pesares, ainda é a melhor. Segundo, porque as obras indicadas pouco estão relacionadas à realidade de leitura deles. Acredito que menos da metade dos candidatos ao vestibular leiam 10 livros por ano. E se alguém me provasse que eles lêem pelo menos um, já me deixaria contente. Não critico exatamente as obras escolhidas, mas o contexto em que elas são inseridas na vida destes jovens, que não passam de leitores em formação, leitores em potencial, que ali naquele momento de suas vidas, não terão o tempo necessário e o prazer de degustar o apetitoso prato que é a leitura.
As aulas nos cursinhos e escolas de ensino médio contribuem para que os alunos saibam de tudo o que está nos livros e de toda a vida dos autores sem que precisem fazer algo que, para eles, não tem a menor importância: ler as obras. Resumos, TD's, aulões específicos e várias outras ferramentas de improviso da leitura, que é deixada de lado por estes profissionais que também têm em suas mentes um forte objetivo: levantar seu nome e o nome da instituição de ensino de onde sairá aquele aluno aprovado nos vestibulares mais concorridos do país.
Esta é a nossa política educacional de incentivo à Literatura: alunos que memorizam informações que lhes são dadas de mão beijada e não formuladas em suas cabeçinhas através de processos cognitivos; obras que são lidas sem o menor prazer literário, sem nem mesmo um objetivo da leitura propriamente dita que não seja a aprovação. "Não tiraremos nada daqueles livros que contribua para o crescimento humano, apenas conseguiremos passar no vestibular". Esta é a mentalidade.
A leitura de nossas obras literárias não deveria ser foco principal apenas na época do vestibular, deveria ser um hábito desde a decodificação das primeiras letras. Ler deveria ser como tomar água e escovar os dentes, coisas que precisamos fazer todos os dias, não necessariamente pela obrigação, mas por sabermos que aquilo só nos fará bem. Se acordo e não tomo água, passo o dia todo com sede, com desejo de água; se não escovo os dentes, sinto que algo está faltando, que algo não vai bem comigo. O mesmo deveria acontecer quando não lemos pelo menos uma página de um livro por dia. Deveríamos sentir sede, fome, mal-estar, a sensação de que algo não vai bem.
Bem, mas voltando à escola, onde eu estava há alguns dias tentando ocupar uma vaga de professora. Durante quase uma manhã inteira que fiquei lá, conversei com alguns professores. Um deles, me agradou bastante. Era jovem, simpático, agradável, estava ministrando aulas lá há pouco tempo, havia algumas semanas. Era professor de Química e iniciamos uma conversa, por incrível que pareça, acreditem, sobre Literatura! Eu estava acompanhada por um amigo que, assim como eu, se formou em Letras e, quando o professor de Química chegou, estávamos falando sobre Literatura. Comentávamos minha decepção com a Literatura focada no vestibular, a falta de hábito de leitura nos brasileiros, etc, etc. O químico se apresentou e começou a participar da conversa. Inicialmente, foi bastante agradável, concordava conosco em tudo. Na metade da conversa, meu amigo se esquivou e deixou a prosa rolar solta só comigo e o meu mais novo amigo químico. Estava tudo muito bem, concordávamos um com o outro, descobrimos que havíamos lido muitas obras em comum, que gostávamos de autores em comum, ele me deu muita força dizendo que com certeza a escola iria me contratar e meu amigo fazia sinal com os olhos como que insinuando o início de uma paquera. Apesar das brincadeirinhas, não me constrangi, estava levando a discussão a sério. Então, para a mudança de rumo da prosa, o professor de Química falou algo que me entristeceu bastante. Disse que não gostava de Literatura brasileira regional, que leu João cabral de Melo Neto e não gostou, que não gostava do Patativa do Assaré, que não entendia porque tínhamos de nos orgulhar de um cara que só escrevia besteiras e falava errado. Houveram alguns instantes de silêncio após estas afirmações. Fiquei perplexa. Havia escrito há poucos dias um texto sobre o Patativa e a cultura nordestina aqui no Letras & Arte. Como um cara que era nordestino e, inicialmente, me pareceu gostar tanto de Literatura, não apreciava a própria cultura? O meu silêncio me desesperava, porque fazia-o acreditar que eu concordava com tudo aquilo, mas eu estava decepcionada. Fiquei pensando se deveria ou não iniciar mais uma discussão, agora com pontos de vista tão divergentes. Será que valeria a pena? Será que eu, em poucos minutos, conseguiria mudar uma opinião que possuía certamente anos, décadas de formação? Antes que eu me decidisse, o coordenador finalmente me chamou e eu fui até à sala dele. Ele me disse objetivamente que precisava de uma professora mais experiente, que apenas os estágios não me valiam muito. E, ao sair de lá, após duas decepções consecutivas, fiquei pensando em tudo aquilo. O coordenador queria uma professora de Literatura experiente. Eu não tinha experiência com o magistério, mas tinha experiência com a leitura. Um bom professor não precisa necessariamente de experiência, mas de conhecimento e amor pelo que faz. Meus pais nunca foram professores e me ensinaram as melhores coisas da vida: o amor, a educação, o respeito ao próximo, lições que nunca esquecerei. De fato, fiquei aliviada, e dei graças a Deus por não ter ficado lá. Não me sentiria bem em trabalhar em uma escola em que o coordenador não sabe o que é ser professor, não sabe o que é Literatura e contrata professores apenas pelo que está escrito em seu currículo, e não pelo que vê em seus olhos durante as entrevistas.
Estou lendo um livro maravilhoso chamado Ecos, obra-prima de um escritor que vive em Piraju, interior de São Paulo e de quem eu tenho um imenso orgulho de ser amiga. Seu nome é Luiz de Almeida, e o Ecos é, na verdade, "um grito em prol da justiça e do bem comum", como ele mesmo o definiu na dedicatória que me fez. Este texto que vocês lêem agora também é um grito, é um grito meu, que retorna através de um sonoro eco incontido nestas palavras, clamando por mudanças. Mudanças no sistema educacional brasileiro, em nossa política, em nossa maneira de ver o mundo e as pessoas, mudanças em nossa mente, em nosso coração...
Precisamos compreender e aceitar o fato de que uma nação sem cultura, sem sabedoria é uma praia sem mar, um beco sem saída. João cabral de Melo Neto não é uma leitura chata para quem sabe ler; Patativa não falava besteiras e nem escrevia errado, apenas escrevia do jeito que falava, do jeito que sabia. E sabia muito! Bem mais do que muitos intelectuais que vivem nas cidades, vão à universidade de carro, se trancam em salas com ar condicionado e ainda reclamam da vida. Patativa não cantava suas poesias, gritava-as! Seus gritos também têm ecos, como os de Luiz de Almeida. Denunciam o sofrimento do povo nordestino, a miséria, a falta de trabalho, de educação e o esquecimento por falta dos governantes. Este meu grito, este meu eco que agora vocês ouvem, denuncia a nossa falta de sabedoria, a nossa falta de amor à cultura genuína de nossa terra que, antes mesmo de ser nordestina é, sobretudo, brasileira.
Esta semana, vi um programa de TV sobre Literatura numa emissora local. O tema abordado no programa era a Padaria Espiritual no Ceará, um movimento cultural do século XIX que deixou nosso estado conhecido nacionalmente e que muita gente hoje em dia sequer ouviu falar. Sua importância para a nossa literatura (pois foi um movimento que, apesar de polivalente nas modalidades artísticas que dele participaram, contribuiu de forma mais densa para a Literatura, pois a maioria de seus padeiros era composta de escritores) foi grandiosa e já foi tema de outro texto do Letras & Arte que vocês podem conferir mais abaixo. Os participantes debatedores do programa eram a diretora da Academia Cearense de Letras, Regina Pamplona Fiúza e meu ex-professor de Literatura Cearense da Universidade Federal do Ceará, Sânzio de Azevedo. Tudo corria bem, até que o apresentador do programa anunciou uma matéria feita nas ruas com o povo cearense em que perguntavam se essas pessoas conheciam a Padaria espiritual. As respostas foram mirabolantes, uma mais absurda que a outra. Fiquei chocada! Mas claro que sei que a culpa de tudo isso não é somente nossa. Tudo bem, acho que o interesse em conhecer é muito importante e deve partir sim de cada um, mas é claro que o nosso sistema de ensino tem a obrigação de nos colocar diante de nossa literatura, de nossa história. As escolas focalizam muito pouco a história do Ceará e a literatura produzida aqui. Na verdade, não era para ser nenhum espanto ouvir da boca de um cidadão cearense que a padaria espiritual é uma avenida de Fortaleza, visto que nossas escolas não contribuem muito para o nosso próprio conhecimento. Tirando a pequena parcela da população que habita os corredores dos cursos universitários, sobretudo os de Letras e de História, pouquíssimo sabemos sobre nós mesmos.
E é por isso que estou aqui, trazendo meu grito, meu eco para estremecer junto com vocês, a uma só voz:
Mudanças, pelo amor de Deus!

4 comentários:

Unknown disse...

Dileta e Querida Amiga Marcinha: só irei comentar teu texto após degustá-lo, pelo menos, mais umas seis, sete... vezes - até pq estou ainda tentando conter as lágrimas. Algumas são de tristeza: pensei que na Terra do Patativa e da Padaria Espiritual o sistema educacional fosse diferente, ou estivesse diferente - no sentido de mais atualizado e alegre. Outras lágrimas são de imensa alegria por saber que existe alguém, no Ceará, soltando seu grito de alerta para que ele ecoe nos ouvidos daqueles que imaginam estar tudo perdido. Que maravilha teu Estado também ter Você. Que alegria imensa eu ter Você como Amiga. Voltarei comentando teu grito. Pode esperar.
ESTEJA E SEJA E FIQUE FELIZ!
Bjus.
Luiz de Almeida

Márcia de Oliveira disse...

Obrigada, Luiz!

Infelizmente, nossa terra não está imune à ignorância humana. Muitas pessoas não sabem valorizar a riqueza que nos cerca, mas o Letras & Arte existe para isso também: para denunciar as coisas ruins e, ao mesmo tempo, não permitir que elas se perpetuem.

Obrigada pelo comentário e pelo anúncio do próximo. Esperaremos ansiosamente para gritarmos juntos!

Um grande beijo! ;*

joserlandio gomes da frança disse...

o texto esta maravilhoso.
mostra tua capacidade de ver o mundo de uma forma critica e apuradissima.
sobre patativa, conheci esse homem, vendia seus livros na banca de revista onde trabalhava, ela vinha toda segunda-feia para prestar conta,
ficava triste quando ele perguntava se vendeu algum, eu dizia que não, as vezes um.
hoje vejo sua importancia, na urca, universidade regional do cariri, no ano que patativa faleceu, colocu uma de suas obras no vestibular.
bom, para ficar na historia tem-se que primeiro morrer?
morrer para viver?
vele a penas ler seu texto. desde sempre tenho a mesma ideia, o pior quando ensinamos literatura na escola particular.
numa publica, os alunos perguntam cai no vestibular, se não cai eles regeitam.
as coisas estão assim.
tudo se resume a vestibular.
não se sinta iniciante, isso é um mito. todos foram iniciantes um dia.
ninguem nasceu falando, só macanaima de mario de andrade.
abraços do seu fâ incondicional
joserlandio

joserlandio gomes da frança disse...
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