Há uma relação significativa entre a proposta literária de José Saramago e a sua vida familiar. O autor de Jangada de Pedra e Ensaio Sobre a Cegueira demonstra, em toda a sua obra, ser um homem saudosista e de muita sensibilidade. Saramago prima por escrever sobre as pessoas que ama e que, de algum modo, participaram significativamente de sua vida.
Sua família parece estar sempre num altíssimo patamar desta categoria. Quando o mestre explica por que escrevera sobre seus pais e seus avós, diz: "Tive a consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer". O autor de Todos os Nomes deixa claro que escrever sobre as pessoas que o geraram é uma maneira de registrar uma fase importante de sua vida, assim como de demonstrar seu carinho e gratidão e também de eternizá-las no tempo.
Sua maneira de criar personagens é interessante e intensamente viva. No discurso "De Como a Personagem foi Mestre e o Autor seu Aprendiz", ele concebe que sempre aprende muito com suas personagens, e que tudo que elas o ensinam o faz um mero aprendiz de suas criaturas. Ao transformar seus pais e seus avós em presonagens literárias, ele os resgata e traz de volta ensinamentos que fizeram dele a pessoa que é hoje. Por isso, afirma ser o criador dessas personagens e, ao mesmo tempo, criatura delas.
Verdade é que todas as personagens citadas em seu discurso o proporcionaram muitas lições de vida. O Sr. Jerônimo (seu avô), por exemplo, ensina ao neto, o pequeno José, que o mundo, apesar de cruel, não é de todo mau. Há uma grande satisfação em se viver, em se afortunar da natureza, da simplicidade, do amor aos entes queridos...enfim, os avós de Saramago, apesar da simplicidade e de todo o sofrimento que viveram, sentiam pena de morrer, pena de deixar para sempre este mundo (aos seus olhos) tão belo.
Aprendeu também com o medíocre pintor de retratos, protagonista do Manual de Pintura & caligrafia, a quem designou H., um homem que o ensinou a honradez de reconhecer seus limites e de aceitar suas próprias raízes, o que efetivamente deu à Literatura de Saramago um caráter enraizado.
Depois, com os homens e as mulheres do Alentejo (mesma região de seus avós), no livro Levantado do Chão, Saramago afirma ter aprendido com esta gente humilde e sofrida a ser paciente, a confiar e a entregar-se ao tempo, que nos constrói e nos destrói; que nos deixa no chão e nos levanta de novo deste mesmo chão.
Em Que Farei com Este Livro? ele admira a coragem e a humildade de Camões em lutar por uma nação, escrever uma obra-prima e depois ser enjeitado por esta mesma nação que tanto ufanou heroicamente, morrendo anos mais tarde na mais completa miséria. Mas, ainda assim, depois de tantas decepções, Camões continuou a se preocupar com o futuro da Literatura nacional. Para Saramago, uma atitude digna de um verdadeiro mestre!
Com as estranhas personagens de Memorial do Convento, Saramago reflete, dentre outras coisas, a sua evolução no modo de pensar a questão do sonho. O sonho é o alimento da alma humana, é ele o combustível para se chegar a algum destino. "Sonhar é ser homem", como sabiamente diz o mestre Linhares Filho. O sonho do padre Bartolomeu Lourenço de terminar a construção da passarola e vê-la voar é o pão de sua própria alma. É a sustentação de sua vida.
Já com Fernando Pessoa (uma de suas maiores influências), entendeu o que era o espetáculo do mundo e resolveu escrever O Ano da Morte de Ricardo Reis. O heterônimo Ricardo Reis o fez entender que viver é assistir a um constante espetáculo, seja ele uma trajédia, uma comédia ou um drama. A vida é o maior espetáculo humano.
Na Jangada de Pedra, uma utopia: realizar o encontro cultural entre os povos peninsulares e os povos do outro lado do Atlântico, numa tentativa de reescrever a história.
Em síntese, é muito importante ressaltar a originalidade da proposta literária do mestre Saramago. Todas as suas personagens, seja reconstruindo a realidade, seja levando a realidade para o absurdo, não são simplesmente criadas por ele; elas, através de seus ensinamentos, é que o levam a ser quem ele é. Parabéns ao mestre!
2 comentários:
Márcia, coisa boa a tua percepção e o teu gosto literário. Agradeço o teu comentário no texto sobre Bandeira. E deixo pra moça um convite: uma passada em meu blog de literatura e jornalismo, em http://urarianoms.blog.uol.com.br/
Abraço.
Depois de uns dias sem visitar o blog, o que vejo... Saramago! O melhor, e simplesmente.
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