quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Machado de Assis: 100 anos depois, e o Humanitismo

Márcia de Oliveira
No último dia 29 completaram-se 100 anos da morte de Joaquim Maria Machado de Assis. Este famoso carioca, mulato, gago e epilético que, apesar das dificuldades ofertadas pela vida, conseguiu se tornar um dos maiores gênios da literatura nacional, com textos que surpreendem até hoje, principalmente, por sua atualidade.
Esta semana, Machado foi notícia. O centenário de sua morte foi lembrado pelos principais jornais impressos e pelos telejornais de todo o país. Todos deram espaço à importância do texto machadiano para a literatura e para a cultura brasileira. O Jornal da Globo (29/09/08) anunciou: "100 anos após sua morte, Machado ainda é tão atual". O Caderno 3 do Diário do Nordeste (28/09/08) disse: "Machado: clássico, logo atemporal". De fato, a atualidade dos temas e o avanço temporal de Machado são indelevelmente indiscutíveis. Os aspectos políticos, econômicos e a visão progressista tecnológica de seus textos trazem o nosso bruxo do Cosme Velho a uma atualidade já retratada e prevista por ele no passado.
Seus romances, marcados por acentuada crítica social, irreverência e ironia, transformaram o autor de Dom Casmurro num dos maiores ecritores brasileiros, mas o que pouca gente sabe é que Machado cultivou com excelência vários outros gêneros literários. Contos, novelas, poesia, teatro e, principalmente, crônicas. Foi como cronista que Machado iniciou sua carreira literária, dedicando aproximadamente 40 anos de sua vida (apenas!) à produção de crônicas em folhetins. Para quem não sabe, os folhetins eram partes dos jornais dedicadas exclusivamente ao entretenimento dos leitores, onde eram publicadas não só crônicas, mas também novelas, contos, etc.
O carioca Machado foi um dos maiores cronistas que o Brasil já teve. Porém, como suas crônicas eram extremamente voltadas à crítica política e davam violentas alfinetadas na sociedade brasileira da época, e por ser a crônica historicamente considerada pela crítica literária um gênero menor, várias séries de crônicas como A Semana e Balas de Estalo foram esquecidas pela historiografia literária. Assim, o nosso envolvente Dr. Semana (um de seus pseudônimos nas crônicas) não se tornou tão conhecido pelos leitores da atualidade quanto Bentinho (Dom Casmurro), Brás Cubas, Capitu e Conselheiro Ayres, todas personagens inesquecíveis de seus romances.
Como leitora, não preciso dizer que sinto verdadeiro fascínio pelas personagens do realismo machadiano. No entanto, há uma, em especial, que me causa profundo deleite e curiosidade. Talvez até mesmo pelo seu ligeiro esquecimento por parte dos leitores em relação a outras personagens mais vistas. Seu nome é Quincas Borba.
O filósofo Quincas Borba, cuja trajetória começa no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas e termina em um romance intitulado por seu próprio nome, é conhecido por ser o inventor da filosofia denominada Humanitismo. Quincas era um homem esquisito, solitário, tido como maluco e que herdou a herança de um tio. Seu único companheiro era um cão de estimação a quem deu-lhe o próprio nome, tamanho era o apreço que lhe tinha.
E como toda filosofia, o Humanitismo possuía um princípio: o Humanitas. Era este princípio que Quincas Borba utilizava para explicar o seu próprio nome posto em um cão:
-Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o princípio da vida e reside em toda a parte, existe também no cão, e este pode assim receber um nome de gente, seja cristão ou muçulmano...
-E se eu morrer antes, como presumo, sobreviverei no nome do meu bom cachorro.
O Humanitismo é o remate das coisas, afirma Quincas Borba. E o Humanitas é o princípio.
-Há nas coisas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível - ou, para usar a linguagem do grande Camões:
Uma verdade que nas coisas anda,
Que mora no visíbil e no invisíbil.
-Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo porque resumo o universo, e o universo é o homem. (Quincas Borba, p.19).
Através deste princípio, Quincas Borba explica a inexistência da morte. Para ele, o encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas pode determinar a supressão de uma delas. Portanto, não há morte; há apenas vida, pois a supressão de uma é a condição de sobrevivência da outra. E, seguindo a mesma linha de raciocínio, o filósofo destaca ainda o caráter benéfico e conservador da guerra. Segundo ele, a guerra é a conservação das substâncias. Não há exterminado. Desaparece um fenômeno, uma expansão, mas a substância é a mesma. E o lema da guerra é: "ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas". Numa analogia mais atual: ao 3º mundo, ódio ou compaixão; aos EUA, as batatas!
Pois é, meus amigos do Letras & Arte, mas com Humanitismo ou sem Humanitismo, um fato intrigante é que Quincas Borba, apesar de título, não é o protagonista da obra. Peripécias do nosso querido bruxo! O romance conta a história de Rubião, um professor humilde, porém interesseiro, que vê em sua amizade com o filósofo Quincas a possibilidade de ascender socialmente. Quincas Borba adoece e não tem parentes vivos; somente o cachorro. Ao morrer, deixa seus bens para o amigo Rubião como recompensa por seus cuidados. Em contrapartida, exige que Rubião cuide do cachorro (Quincas Borba), pois caso se desfaça do animal, perde todo o direito de receptor da herança. E Rubião, obviamente, faz a vontade do amigo. Fica com o cachorro e muda-se de Barbacena (cidade onde morava Quincas Borba) para o Rio de janeiro, capital imperial, onde passa a levar uma vida abastada (como sempre sonhou), respirando os sofisticados ares da corte. Lá, conhece pessoas influentes, esbanja, oferece jantares aos amigos, se apaixona por Sofia (mulher de seu amigo Palha, não sendo porém correspondido), faz negócios mirabolantes e acaba perdendo tudo o que tem. Na mais completa miséria, enlouquece. Passado algum tempo, volta com o cachorro para Barbacena. Desprovido de posses, perambula pela cidade, passa fome e sede, toma chuva, adoece e morre. Ironicamente, antes de morrer, grita o lema da guerra: ao vencedor, as batatas!
O Humanitismo trata-se de uma filosofia materialista, em muitos momentos contraditória, e pouco existencial. De forma irônica e irreverente, Machado acentua forte crítica social e provoca uma reflexão no leitor. Segundo o escritor José Castello, Machado de Assis, assim como todo grande escritor, é um pensador do mundo. Não é filósofo, não é teólogo, não é cientista. Mas existe um caminho de pensar o mundo, que é a Literatura, que não tem nada a ver com esses campos, mas produz pensamento.
Na Literatura não existem verdades universais; existem interpretações, reflexões que devem ser formuladas pelo próprio leitor, a partir do que encontra de mais significativo no texto. Machado não é o tipo do escritor que deixa lições; apenas provoca reflexões.
A filosofia humanitista de Quincas Borba é apenas o retrato da real filosofia humana, cuja ganância e o desejo de ascenção social, supervalorizam as pessoas pelo que possuem e não pelo que realmente são. A maior riqueza da escritura de Machado é justamente extrair grandeza das pequenas coisas. O seu apego às coisas menores da vida cotidiana, aparentemente mais desprezíveis, sem significado, das quais ele sabia extrair um imenso valor, com sua sensibilidade e inteligência.
Machado de Assis é mais que um escritor; é um pensador da existência. E existir é existir no mundo, no erro, na miséria, na ignorância. Os temas escolhidos por Machado, segundo José Castello, não são os grandes temas, os mais elevados, os mais sublimes; mas os pequenos temas, aqueles que nos infernizam e nos fazem tomar decisões na vida.
Ser humano é ser imperfeito. E Machado sabia disso quando compôs um dos seus mais intrigantes personagens: o filósofo Quincas Borba. Ao afirmar que Humanitas é o homem porque este é a representação do universo, o filósofo põe em choque o homem e o seu verdadeiro ser.É exatamente essa visão tão real do mundo que faz da obra de Machado uma obra viva até hoje, tão viva quanto nos séculos XVIII ou XIX. Essa reflexão sobre valores humanos que nos cercam e que parecem tão simples, que nem mesmo prestamos muita atenção neles, faz do autor de Quincas Borba um pensador inigualável. Tanto Rubião quanto Quincas Borba foram vencedores. E o Humanitismo só veio provar que, segundo o princípio humano da guerra, ao final de tudo, ao vencedor, só restam mesmo as batatas.
Esse texto foi uma promessa que fiz aos leitores do Letras & Arte logo nas primeiras semanas de sua existência. Como promessa é dívida, ei-lo aqui! Espero que tenham gostado.
Gostaria então de terminar dizendo que aqui na minha cidade, no bairro Damas, existe uma rua chamada Machado de Assis. E lá, todos os moradores, assim como o escritor, têm muita história para contar...Porém, seriam necessários, pelo menos, mais uns cem anos para relatá-las! Vocês podem ficar sabendo de muitas delas em:
Grande abraço.