O romance Memorial do Convento, de José Saramago representa um avanço no campo da narrativa histórica. A obra perpassa um período de aproximadamente trinta anos da história de Portugal à época da Inquisição. Nela, Saramago critica Portugal do século XVIII que, apesar de ser um país rico e abundante, submete seu povo à miséria e à exploração. Suas personagens encontram-se distribuídas entre o luxo e o requinte da corte e a pobreza e simplicidade da vida popular.
Os principais acontecimentos giram em torno dos protagonistas padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, um homem que, apesar de religioso, não corresponde às injustiças do Santo Ofício e dedica toda a sua vida à realização do sonho libertador de construção da passarola, aeróstato que irá sobrevoar o mundo de ponta a ponta; Baltasar Sete-Sóis, um ex-soldado de guerra que tem na sua pouca instrução e simplicidade grandes reflexos da sabedoria humana e sua Blimunda Sete-Luas, mulher de exagerada visão que pode enxergar através do corpo e das coisas. A visão de Blimunda é a janela de Saramago que o possibilita enxergar a história do século XVIII com todos os seus deslizes morais, políticos e religiosos, época marcada, principalmente, pelo cumprimento da promessa do rei D. João V de construir um enorme convento em Mafra, caso a divina providência lhe concedesse um herdeiro para o trono.
A obra nos mostra que o governo de D. João V foi caracterizado pelos gastos exagerados, pelos excessos com as importações e exportações (em especial o ouro vindo do Brasil e o trigo da Irlanda), por suas construções megalômanas (como o convento de Mafra), por sua austeridade e vaidade e, principalmente, pela exploração e miséria a qual submetia o povo.
Tudo o que era extraído das colônias apenas transitava pela Metrópole. O povo não usufruía as mercadorias que, em sua maioria, eram vendidas sob altos preços e repassadas a outros países como exportação. Saramago deixa clara a sua visão crítica à falência de uma política de navegação fundamentada na exploração colonial e na ausência de uma política de fixação interna em Portugal.
Utilizando um certo mascaramento de vozes como recurso estilístico em sua fala, além de uma fina ironia, o narrador denuncia os excessos com os carregamentos de trigo vindos da Irlanda que, apesar de suficientemente abundantes para alimentar toda a população portuguesa, não evitavam a falta do pão, alimento indispensável à vida, sobre a mesa do povo lusitano:
“Levar este pão à boca é gesto fácil, excelente de fazer se a fome o reclama, portanto alimento do corpo, benefício do lavrador, provavelmente maior benefício de alguns que entre a foice e os dentes souberam meter mãos de levar e trazer e bolsas de guardar, e esta é a regra. Não há em Portugal trigo que baste ao perpétuo apetite que os portugueses têm de pão, parece que não sabem comer outra coisa, por isso os estrangeiros que cá moram, doridos das nossas necessidades, que em maior volume frutificam que sementes de abóbora, mandam vir, das suas próprias e outras terras, frotas de cem navios carregados de cereal”. (2007: p.56)
Segundo Roland Barthes, “a escrita romanesca tem por função colocar a máscara e, ao mesmo tempo, apontá-la. Sendo assim, todo romancista articularia mentiras críveis, nas quais a sinceridade precisa de signos falsos para durar e ser consumida. O produto desta ambigüidade é justamente a escritura, o texto final”. (1971: p.47). Saramago utiliza suas máscaras estilísticas para apontar seus pontos de vista de forma crítica e argumentada. Um dos principais exemplos disso é justamente o constante teor reflexivo de seus narradores em toda a sua produção literária. Em Memorial do Convento, há várias reflexões sobre a justiça, sobre a loucura, sobre o sonho, além das críticas a instituições que se alimentam de relações distorcidas de poder, como a Igreja Católica, por exemplo. A Literatura de Saramago é uma Literatura socialmente interessada e não funciona só como um “espelho da realidade”. Saramago, convencido de que a arte é completamente necessária à sociedade, se conscientizou de que:
“O verdadeiro conteúdo da obra de arte torna-se o seu modo de ver e de julgar o mundo, sendo só assim, na medida em que transcende a falsa dicotomia entre forma e conteúdo, que ela mantém seu compromisso com a realidade”. (OLIVEIRA FILHO, 1990: p.142)
Toda a obra de Saramago reflete, de alguma forma, uma problematização entre história e ficção. Tal problematização é chamada por Linda Hutcheon de Metaficção Historiográfica (HUTCHEON, 1993: p.11), e tem por características a auto-reflexão e a apropriação de acontecimentos e personagens históricos. Esta marca na Literatura de Saramago a aproxima muito da Literatura Hispano-americana produzida por García Márquez e Alejo Carpentier, por exemplo.
Além de sua consagrada arqueologia verbal e de sua polifonia de vozes, o mestre Sara também utiliza outros recursos estilísticos interessantes para denunciar as falhas do Mercantilismo português, como a antecipação de acontecimentos futuros, observada no trecho:
“Tanto mais que se fala em próxima chegada de uma frota da Holanda carregada do mesmo gênero, mas desta virá a saber-se que a assaltou uma esquadra francesa quase na entrada da barra, e assim o preço, que ia baixar, não baixa, se for preciso deita-se fogo a um celeiro ou dois, mandando em seguida apregoar a falta que o trigo ardido já está fazendo, quando julgávamos que havia tanto e de sobra”. (2007: p.56-57)
Apesar de não ser o elemento central da narrativa, o contexto econômico português refletido na obra submete as personagens a vários conflitos. A vontade repressora do rei, oriunda de sua vaidade, ao iniciar as construções em Mafra, faz com que muitas pessoas, sem outras opções de ganhar a vida, trabalhem arduamente nas obras do convento, sacrificando-se e até mesmo morrendo em virtude das arriscadas condições de trabalho dificultadas pela imensidão da empreitada.
Ao contar a história dos operários que trabalharam em Mafra e nomeá-los, Saramago encontra uma maneira de registrar e dar voz aos homens que lutaram, se sacrificaram ou até mesmo morreram em nome de sua integridade, de seus sonhos e da busca de sua sobrevivência, e junto com a vontade do padre Bartolomeu de concluir o invento da passarola para ver como a terra é bela e imensa lá de cima fica clara a expressão da vontade humana de não mais se deixar oprimir e de não mais se deixar esquecer. A história tradicional que referia-se ao convento de Mafra como um grande feito realizado por D. João V agora se inverte: é contada sob o ponto de vista do oprimido; não sob o ponto de vista do opressor. O convento de Mafra tornou-se uma realização do povo heróico que sofreu e morreu para a sua construção e, devido ao controle burguês das fontes históricas, acabou esquecido entre as colunas. Em Memorial do Convento, Saramago recria a história e, através de uma nova linguagem, de uma árdua visão crítica e de um novo modelo ficcional, o povo deixa de ser coadjuvante e passa a ser sujeito histórico de seu tempo.
Referências Bibliográficas:
SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 33ª edição.Rio de janeiro; Bertrand Brasil, 2007.
BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escritura. Rio de janeiro; Bertrand Brasil, 1995.
OLIVEIRA FILHO, O.J.de. Saramago e a Ficção Latino-americana. Revista de Letras; São Paulo, 1990 n.30.p.141-152.
SILVA, Tereza Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a História e a Ficção: uma saga de portugueses. Lisboa; Publicações Dom Quixote, 1989.